Rosa dos Ventos

Diário de La Libertad

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Dois temas me seduzem e nortearam a minha vida nas últimas quatro décadas: o surfe e o jornalismo. Sobre a vida no mar, sempre gostei das ondas menos conhecidas, lugares onde eu pudesse estar longe do crowd e dividir o lineup com semelhantes mais hippies e menos competitivos, digamos.

Como repórter, busco contar a história pelo viés dos coadjuvantes e, de preferência, com um olhar para o dia-a-dia das populações menos privilegiadas. Na real, gosto de estar em países onde os ruídos na rua, os cheiros, as pessoas, nada me faça sentir em casa, isso incita pensamentos mais interessantes.

Mas eu também curto ser a cabeça do bagre. Tenho estima por aventuras planejadas e barcas monótonas a paraísos turísticos rodeado pelos amigos, desfrutar de um bom prato de comida, esbarrar com meninas bonitas e alegres, essas coisas.

Em 1990, embarquei para México e El Salvador. México foi um roteiro arquitetado com antecedência, já era a minha terceira trip para Puerto. Estava acompanhado do fotógrafo Átila Sbruzzi e dos surfistas Jorge Pacelli, Marcos Brasa, Luisinho Oliveira e Murilo Brandi. A ondulação oscilou entre 8, 10 pés, uma viagem que de monótona não teve quase nada. Um sufoco da porra!

Passados 20 dias e terminado o rolo compressor no beach break de Puerto, a rapaziada retornou ao Brasil e eu voei para conhecer Punta Roca, a mítica direita de La Libertad. El Salvador passava por uma terrível guerra civil que só se encerrou com o Acordo de Chapultepec, assinado dois anos depois. De 1979 a 1992, foram 13 anos de violência e cerca de 100 mil mortos e desaparecidos num “paiseco” do tamanho do estado de Sergipe, o catatau das Américas.

Foram 40 dias em que surfei algumas das melhores ondas da minha vida. Sozinho, peregrinei entre as direitas apelidadas ‘chocolat barrels’, nos anos 70, por algum escriba da Surfer, e os pueblos de Las Vueltas e Las Flores, no departamento de Chalatenango, estado controlado pela Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional [FMLN]. Eu também estava ansioso por conhecer a famosa ‘esquerda’ de El Salvador.

Durante anos de disputa entre governo e guerrilha, os EUA, ainda sob trauma de Cuba, despejavam milhões de dólares e fuzis M16 para garantir o seu backyard na América Central. Por outro lado, os sandinistas da Nicarágua, sob tutela da União Soviética, tratavam de tramar para que os fuzis AK47 e as minas ‘quita piés’ chegassem às mãos da FMLN. Essa foi a tempestade perfeita para espantar o crowd e todos os turistas loirinhos do pico. Além de formar um dos principais times de futebol de amputados do mundo.

Era meu debut em países em conflito armado e não me acostumava ao barulho dos morteiros e tiros. Todas as noites, a explosões fortes aceleravam o coração e a luz do Motel Rick, em frente ao pico, apagava. A estratégia da FMLN era sabotar a infraestrutura do país, as torres de energia, estradas e os quartéis também eram alvos frequentes. Enquanto isso, aviões do exército sobrevoavam a costa despejando folhetos de contra-propaganda estimulando a população a denunciar qualquer movimentação estranha, um vizinho, o tio. As minas terrestres mutilaram milhares de civis que nada tinham a ver com aquilo e essa foi a marca registrada dessa estúpida guerra. Para cada soldado, perderam a vida dois guerrilheiros da Farabundo Marti, e dessa maneira El Salvador exterminou uma geração inteira de jovens entre 18 e 30 anos.

Nessa minha única visita a El Salvador, os locais falavam de outras ondas mais ao norte, mas que eram lugares potencialmente sinistros e que deviam ser evitados. Em 10 anos de conflito, uma sociedade inteira foi subtraída de suas necessidades morais e básicas e havia uma população armada até os dentes esperando um surfista queimadinho de sol com uma prancha de surfe sob os braços aparecer. Na dúvida, só surfei La Libertad.

Nos anos 70, El Salvador era a opção para os gringos que queriam surfe bom, barato e água quente. Uma trip em conta, La Libertad e Zunzal eram uma espécie de quintal da Flórida e Califórnia. Dois surfistas de Orange County, Kevin Naughton e Craig Peterson, impregnaram a mente da garotada com histórias fantásticas de El Salvador nas páginas da Surfer Magazine. Encantavam o mundo inteiro enquanto deslizavam de monoquilhas nas direitas vazias de La Libertad, enquanto passeavam pelas ondas mais amigas em Zunzal. Kevin e Craig riscaram o litoral virgem a bordo de uma Kombi colorida, descobriram muitos picos nunca antes surfados, assavam pescados na praia e mostraram um mundo que povoava o imaginário de qualquer surfista do planeta. Era o mundo perfeito, a onda perfeita, o ambiente que eu sonhava, que meu amigo sonhava, tudo o que nós queríamos ser e onde nós desejávamos estar.

El Salvador foi a primeira viagem que expandiu a minha percepção do mundo e do ser humano. No melhor e pior sentido.

Depois vieram México outras tantas vezes, Guatemala, Costa Rica, Venezuela, Califa, Tobago, África do Sul, Indonésia, Havaí, sempre na busca das ondas, também uma boa imersão nas guerras de Bósnia em 1993 e 1994, e Palestina, de olho na revolta árabe contra a ocupação israelense, Índia, Nepal buscando conhecimentos e tantos outros roteiros sublimes. Em breve.

Me apresento dessa forma para engatar o tema de uma próxima coluna aqui no Waves. De olho no Instagram, encontrei recentemente o perfil de um fotógrafo com um perfil bastante familiar, Eduardo Martins.

 

Mas essa é uma outra história…

 

Até breve!

 

 

Fernando Costa Netto
Jornalista e fotógrafo, Fernando é idealizador da Mostra SP de Fotografia, maior evento expositivo de fotografia de São Paulo, um dos fundadores da revista Trip e iniciou projetos editoriais como os das revistas Venice (1993), Boom (1994) e 2005 (2005). Foi editor-chefe do extinto jornal Notícias Populares, do Grupo Folha, entre 1997 e 2000, e integrante do coletivo Polaroid SX70.