Leitura de Onda

Dia 4 de janeiro

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4 de janeiro em Jaws, Maui. Mais um dia histórico do surf de ondas grandes. Foto: Bruno Lemos / Lemosimages.com.

Todos os esportes do mundo têm seus dias de “turning point”, aquelas datas consideradas um marco evolutivo, que os praticantes se lembrarão por muito tempo. No surf, especialmente no surf de ondas gigantes, o dia 4 de janeiro de 2012 foi um desses pontos de mutação.

 

Uma horda de especialistas em montanhas d´água de alto calibre, liderada pelos baianos Danilo Couto, Yuri Soledade e Márcio Freire, tirou as suas guns do armário para encarar, na remada, monstros de 30 pés em Jaws, sob difíceis condições de vento e direção de swell. 

 

Nos dois últimos anos, os baianos provaram ao mundo que era possível remar em Pea´hi. Com as portas abertas, nesta temporada aconteceu o previsto: no primeiro swell mais assustador do inverno, os locais do pico ditaram a regra: o surf seria na remada. Quem quisesse, que buscasse a prancha grande em casa e enchesse o pulmão de ar.

 

Para orgulho do Brasil, Danilo, Yuri e Márcio lideraram os surfistas. Bruno Pesca, surfista e produtor de vídeo que estava no Hawaii, conta que eles deram dicas fundamentais mesmo a surfistas mais experientes, que nunca tinham surfado na remada aquela onda: “Os gringos estavam fazendo grupinho para entrar junto com os baianos. Era uma coisa declarada, chegaram na humildade, porque sabiam que os brasileiros já tinham o know-how de como entrar naquele mar monstruoso. Desde a descida, com corda, pelo cliff, até a remada”.

 

O domínio brasileiro foi estampado na capa do jornal Maui News, no dia 7, numa enorme foto com três brasileiros numa onda: Lapinho Coutinho, Carlos Burle e Danilo Couto. 

 

Num site americano, um texto dava o tom da sessão: “Para quem duvida de que os brasileiros são atualmente uma força majoritária no surf, eu apresento a vocês Carlos Burle e Danilo Couto em Jaws. Parece que Danilo está pegando a onda de onde ele saiu ano passado, quando ganhou o prêmio principal da XXL”.

 

Bati um longo papo com Danilo e Lapinho sobre a sessão. Em vez de fazer, eu mesmo, um texto sobre o que eles me contaram, posto trechos do depoimento de Danilo (com algumas participações pontuais de Lapinho) como o documento escrito de um dia histórico. 

 

Sobre os limites do dia 4 “O limite foi bem puxado, o vento estava forte, o mar, difícil. Poucas ondas foram surfadas por cada atleta. Muita gente perdeu prancha, mas um grande passo da evolução do surfe de remada foi dado. Algumas séries estavam maiores do que a sessão do ano passado.

 

Consegui completar um air drop e, quando puxei a prancha, estava quebrada. Não sei se ela quebrou no drop ou depois, na onda. 

 

Foi legal ver, dentro d´água, surfistas experientes como Dave Wassell, Shane Dorian e Nathan Fletcher dividindo o espaço com a nova geração de ondas grandes, como Lapinho Coutinho. 

 

Uma coisa interessante é que o crowd de Jaws, naquele dia, parecia o de um dia de 15 pés em Waimea, muitas vezes com dois ou três surfistas. Só que o surfe eram em bombas de 25 pés. Tinham pelo menos 30 cabeças na água.”

 

Lapinho “Já estava há um mês na casa de Danilo, já tinha pego uns mares bons, no máximo 15 pés, mas Jaws estava em minha mente. Danilo, Yuri e Márcio me deram todas as dicas. Dormia pensando nisso. No dia, estava relaxado. Eu, Burle e Makua (Rothman) seguimos o Márcio para descer o cliff. Entrei bem, mas na saída passei um perrengue enorme. Fiquei preso nas pedras, tomando espuma, não conseguia levantar, a prancha quebrou toda e o quebra-coco lançou o jet-ski nas pedras. Aquilo, na remada, é coisa de maluco. Você tem que ir disposto a quebrar a sua prancha para salvar a sua vida”.

 

“Fiquei uma hora vendo as séries do canal, sem pegar onda. Veio uma menorzinha, devia ter uns 15 pés. Dropei, fiz a onda, ganhei confiança, fui para o pico. Logo depois, veio a onda do Danilo e do Burle, não vi ninguém. Apontei o bico para a beira e disse, vou nessa. Foi a baforada da vida, completei a onda. Aí, peguei mais confiança e peguei outra. Dei um air drop, tomei um vacão, caí do lip. Meu colete de flutuação rasgou, quase saiu pela cabeça, mas consegui segurar num último instante. Ele me jogou para a superfície, e pude respirar antes de tomar mais duas ondas da série na cabeça. O colete me salvou.”

 

O resgate da remada O surf de remada está sendo resgatado. No tow in, em dias mais fáceis, já não tinha nenhuma organização. Na remada, se você se posicionar no pico, ninguém vai te atrapalhar. A elite do esporte tem investido em equipamentos de segurança (como o colete do Shane Dorian, usado pela maioria dos surfistas na água) e deixado um pouco o jet, que continua sendo mais um fundamental equipamento de segurança.

 

Ano passado, já ocorreu, de certa forma, uma consolidação da remada em ondas antes surfadas apenas com o auxílio do jet. Esse limite, que certa vez o Mark Foo chamou de “unridden realm” está sendo ampliado. Era de 25, 30 pés.  

 

Mas o tow in não vai acabar. Há alguns tipos de onda, como a de Teahupoo, que chamamos de “Slab”, em que a onda entra abruptamente na bancada e, a partir de um determinado tamanho, ainda é impossível entrar na remada. O maior Teahupoo do ano passado foi assim. Mesmo com jet ski tiveram dificuldade para surfar pelo tamanho e força das ondas naquele dia. Ou seja, tem dias que só de jet mesmo!   

 

Acho que houve uma evolução no big surf. A nossa geração entrou no tow in, conheceu o equipamento, se aperfeiçoou na pilotagem, expôs o jet a mares maiores e, agora, saberá quando será necessário usar o equipamento para rebocar surfistas e quando aproveitá-lo apenas como item de segurança.”    

 

Locais ditam a remada “Em Jaws, na sessão, foi uma coisa natural, pela atitude dos locais. Virou uma questão de honra. Todos os locais estavam na mesma vibe, do surfe de remada. Com isso, os surfistas se sentiram obrigados a pegar a gunzeira e entrar no mar. 

 

A dificuldade de entrar na remada em Jaws “É bem difícil entrar lá na remada. Você desce um cliff, pode escorregar e cair. A gente entra no mar por um cantinho, mas nesse swell de Norte, com período curto, estava mais difícil ainda. Para sair, é complicado. Não é raro perder a prancha nas pedras e se cortar todo. É um cenário muito difícil: você desce um despenhadeiro, pula de pedras, é varrido, é outra dimensão de esporte”

 

A dificuldade de Jaws na remada “É um drop muito difícil, uma onda cavada e o vento é quase sempre muito forte. Maui venta muito, é a capital do windsurf, e Jaws fica no meio das ilhas, todas as direções de vento são canalizadas para aquela região. Além disso, é uma onda que quebra em vários lugares, há uma dificuldade real de se posicionar no lugar certo. No dia que o swell entrar liso, na condição ideal, será a grande sessão”.

 

Crowd e localismo “É possível que os locais acabem percebendo que tem que arrumar a casa. Para o localismo surgir, pode ser uma questão de tempo. Pode virar uma nova Pipeline. Daqui a pouco, 15, 20 caras vão remar numa bomba em busca de um tubo. Vão acabar dando a dura. Não é uma onda apenas de drop, como Waimea. Tem uma seção importante, um tubo”. 

 

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Gladiadores de Jaws


Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".