Leitura de Onda

Detalhes que decidem

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Michel Bourez driblou as imprecisões do mar e fez prevalecer seu surfe em condições difíceis no Postinho (RJ). Foto: © ASP / Smorigo
 

Michel Bourez aprendeu a vencer. Mais que isso, tomou gosto pelo champanhe.

 

O taitiano caminhou sem chamar atenção pelas fases iniciais do Billabong Rio Pro, passou pelo atoleiro de duas repescagens e, enfim, cresceu no dia decisivo, seguindo fórmula vencedora já consagrada por outros grandes surfistas.

 

A vitória revela a boa fase do taitiano, que este ano vem conseguindo equilibrar a conhecida ferocidade com linhas mais definidas e tática competitiva. Mas nos mostra também que, este ano, venceu quem conseguiu resistir à instabilidade do mar do Postinho. Bourez, num certo sentido, achou o bilhete premiado da loteria.

 

É importante não desmerecer a conquista. Não faltam méritos a um surfista capaz de driblar as imprecisões do mar e fazer prevalecer seu surfe em condições difíceis. Um surfista que elimina Joel Parkinson, Jordy Smith e Taj Burrow, antes de vencer o garoto Kolohe Andino na final, deve ser reverenciado.

 

Muitos favoritos ficaram pelo caminho. Perderam no detalhe – do mar, da última manobra não finalizada, da onda salvadora que chegou para o adversário.

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Gabriel Medina perdeu para um dos mais limitados surfistas do tour, Travis Logie, numa batalha em que o sul-africano encontrou a pérola tubular no último minuto para virar uma bateria perdida. Foto: Bruno Lemos
 

 

Gabriel Medina é o caso clássico: vinha surfando muito bem, fora da curva média do evento. Era um dos únicos surfistas capazes de estabelecer pontuações consistentes mesmo sem encontrar as melhores ondas da bateria.

 

Caiu para um dos mais limitados surfistas do tour, Travis Logie, numa batalha em que o sul-africano encontrou a pérola tubular no último minuto para virar uma bateria perdida. Antes disso, o brasileiro teve a oportunidade de matar o adversário em sua segunda onda pontuada, mas caiu no aéreo de finalização.

 

Perdeu nos detalhes. Foi um castigo – talvez duro demais – para Medina e para o público que já identificava nele o favorito do ano.

 

Agora, ele terá três etapas em ondas consistentes (Fiji, J-Bay e Teahupoo) para, em vez de confirmar o favoritismo, surpreender o mundo em ondas também afeitas a um grande número de surfistas de linha, mais experimentados.

 

O brasileiro mais bem colocado, mais uma vez, foi Adriano de Souza. Perdeu para Kelly Slater, depois de uma longa sequência de vitórias sobre o adversário.

 

O êxito do americano foi construído a partir de uma onda nota dez. Venceu no detalhe – não do mar, neste caso, mas da incrível capacidade do novo líder do ranking mundial de domar uma onda absolutamente quadrada e instável e transformá-la em pontuação perfeita.

 

Adriano perdeu a bateria ao ouvir a primeira nota do adversário, num confronto eternamente marcado pela guerra psicológica. Desta vez, quem oprimiu foi Slater.

Numa leitura mais crítica – e necessária – os brasileiros não aproveitaram a vantagem de competir em casa. A instabilidade do mar não é desculpa – afinal, o risco Postinho, que pode ter dias fantásticos ou terríveis, é velho conhecido (em outra coluna, falarei mais detidamente sobre a escolha do pico).

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David do Carmo entrou na água como deveriam entrar todos os outros: com a faca nos dentes. Foto: Bruno Lemos
 

 

Uma nota de exceção vai para David do Carmo, nosso campeão local, que entrou na água como deveriam entrar todos os outros: com a faca nos dentes. Eliminou inapelavelmente Mick Fanning e não parou Kelly Slater por pouco. Poderia até ter vencido se tivesse escolhido barrar o americano quando liderava.

 

No mais, o Postinho fez mal aos brasileiros.

 

Num ano muito disputado, sem qualquer surfista fora da curva e uma diferença inferior a 3 mil pontos do primeiro para o quinto colocado (após quatro etapas), vencerá quem conseguir se equilibrar em diferentes condições de mar e dar poucas margens para perder no detalhe.

 

Kelly Slater aparece em condição muito confortável para, enfim, conquistar o seu 12o título mundial. Disputará os próximos 30 mil pontos em arenas nas quais é notadamente um dos melhores – se não o melhor – e conseguiu sair líder do Brasil mesmo sem ter feito sequer uma final na temporada.

 

Mas, como aconteceu no Brasil e na Austrália, surpresas acontecem – está aí a beleza do esporte. Algo me diz que Gabriel Medina, que até agora perdeu onde deveria ganhar e ganhou onde poderia perder, fará bons resultados nas etapas mais difíceis do ano.  Parece pronto para isso.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".