Leitura de Onda

De prancha nos Andes

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Mito do surf havaiano, Gerry Lopez também curte deslizar na neve. Foto: Bruno Lemos / Lemosimages.com.

A onda de deslizar em cima de uma prancha sobre uma superfície começou com os polinésios lá pelo século IV. Os caras viviam nas ilhas do Pacífico, isolados do mundo. Tinham que arrumar um jeito de se divertir – correr ondas de pé em alaias era uma boa. O surfe atravessou séculos e, no século XX, quando foi apresentado à cultura jovem, fez um monte de filhos. Um deles se chama snowboard.

Descer com uma prancha uma montanha coberta por neve provoca um prazer sensorial muito semelhante ao de um surfista numa onda. Antes que meu primo Lúcio proteste, digo: nada se iguala a um bom dia de surfe. Passar uma tarde com amigos num pico deserto com água morna e tubos para os dois lados é uma experiência transcendental. É tão impactante que passamos a vida nessa louca busca.

No snowboard, não há tubos. Surfistas acostumados a shorts se assustam com as roupas necessárias à montanha: calça, casaco, botas, meias especiais, óculos, capacete para os mais atirados, luva e, em dias frios, até balaclava. E a neve não está no quintal de casa – os flocos ralos que caem na Região Sul não dão nem pro começo.

Mas Gerry Lopez não se mudaria para as montanhas de Oregon com a família se o snowboard também não tivesse lá a sua magia. Ele não deixou de lado só os tubos de Pipeline, ele deixou de lado um raro passe-livre para pegar as melhores no melhor pico do planeta. Não é pouca coisa.

 

A Surfer certa vez quis saber a razão da aparente insanidade. Diz, Lopez: “Eu nunca tinha passado uma temporada na montanha. Quando minha mulher finalmente conseguiu me carregar, eu me apaixonei imediatamente. Hoje, você sabe, apenas estar aqui com a minha família é recompensador e me dá mais satisfação que qualquer coisa. Estamos aqui quase o tempo todo, mas eu ainda vou para a água com alguma regularidade e faço viagens de surfe”.

O mestre Yoda do surfe acertou no alvo. Em viagens de neve, é comum ver marido, mulher e filhos esquiando juntos, todos numa onda só. Também não faltam avós com netos, lado a lado. No surfe, essa imagem ainda não é tão comum, apesar de também existir, sobretudo nos países com mais tradição no esporte, como a Austrália. Talvez por conta disso, ainda haja mais infraestrutura para a família em montanhas nevadas que em praias com ondas perfeitas.

O jornalista da Surfer insistiu com Mr Pipe: “Tem alguma coisa no snowboard que se compare à experiência de um tubo?”. Lopez, de bate-pronto: “Aéreo”. Do alto de seus quase 60, Lopez garantiu que, na neve, dá os seus saltos. É claro que, neste caso, a comparação com o surfe fica prejudicada, já que ele nunca deu um alley-oop na água.

O snowboard também atrai porque permite a prática mesmo em dias crowdeados. Você desce na mesma montanha que seu camarada de viagem e que outros 30, sem que isso prejudique o esporte. Para os velhos cansados da remada do surfe, a neve ainda oferece lifts automatizados. Você descansa da descida sentado.

A melhor onda do esporte não é a pista convencional, cuja neve é compactada para atender a esquiadores. O snowboard se torna uma experiência mística quando praticado na montanha virgem, com neve em pó ainda intocada. Nos Andes, onde estou agora, tem uma pá dessas montanhas. A prancha risca a neve fofa, traça arcos suaves nos vales mais abruptos, voa quando é necessário.

No fim das contas, o bom mesmo é surfar a montanha. E reproduzir, na neve, a incrível sensação de liberdade inventada pelo povo polinésio.

 

Tulio Brandão é repórter de O Globo, colunista do site Waves e da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".