Leitura de Onda

ASP no córner do ringue

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Bobby Martinez, uma vítima e um crítico do sistema de rotação abandonado pela ASP. Foto: Aleko Stergiou.

Os esportes olímpicos de Pierre de Coubertin têm dois traços comuns: regras rígidas e disciplina. Numa quadra de vôlei, o jogador é a peça bem comportada de uma engrenagem feita para educar jovens, para ensiná-los os valores certos da vida. 

 

 

Tentam, há décadas, encaixotar o surf na mesma embalagem. Não adianta. O surfista e a onda não cabem no formato de esporte idealizado pelo Barão, que não por acaso era pedagogo.

 

Quem surfa sabe que, na expressão natural do esporte, não há espaço para lições pedagógicas. O surf tem natureza contestadora, livre de regras. Nas praias do mundo, costuma ser praticado por garotos rebeldes, loucos para demolir os castelos de disciplina de esportes olímpicos.

 

Agora, imagine juntar essa galera com asas, que cresceu descolada de livros de regra, atrás apenas de reabastecer a alma com o prazer sensorial do surf, numa organização que precisa de estatuto. A ASP nasceu com a dura missão de botar na caixa quem nasceu para ficar fora dela.

 

Numa discussão, é importante reconhecer alguns argumentos da outra parte. O enorme nariz de cera escrito acima relativiza a histórica dificuldade do órgão máximo do surf mundial em gerir o esporte, mas definitivamente não serve como álibi para os equívocos recentes.

 

A ASP vem cometendo erros que poderiam ser evitados por associações amadoras. Uma combinação explosiva de omissões, equívocos, indecisão entre a postura conservadora e a progressista e, por último mas talvez o mais importante, uma crônica falta de pulso firme para bancar decisões difíceis tem afetado a entidade.

 

Num momento tão especial para o surf mundial, de mudanças profundas na dinâmica do esporte, a ASP está no córner do ringue de boxe, tomando socos seguidos no fígado.

 

A entidade deixou a guarda perigosamente aberta várias vezes: elaborou um sistema de rotação sem discuti-lo exaustivamente, escreveu uma estranha carta justificando o julgamento de Adriano de Souza nas quartas da etapa do Rio, errou bisonhamente na conta que deu o título mundial a Kelly Slater, trocou de comando com o trem quase descarrilando e, agora, como gran finale, anunciou o fim da rotação em 2012.

 

Conheço sólidos argumentos favoráveis e contrários à rotação. Dizem os críticos que o modelo pressiona excessivamente o surfista que entrou na elite e quem tenta se manter lá. O primeiro não teria tempo de refinar o surf para brigar com os melhores do mundo em seis meses.

 

Até agora, essa tese não se confirmou, já que a molecada tem pontuado sem dificuldades. O segundo, normalmente mais maduro em ondas agudas, não teria tempo de recuperar pontos em arenas em que é especialista. É o caso de Kieren Perrow e Pipeline.  

 

Quem defende a rotação alega que o modelo ajudou a revolucionar o surf, a pressionar quem estava na tediosa zona de conforto da elite protecionista a mexer as pernas para realizar novas manobras. O novo modelo, para os defensores, teria sido um botão de “reload“ no esporte.

 

Prefiro dispensar alguns argumentos que têm sido utilizados, como o que o fim da rotação seria mais uma forma de a ASP brecar a revolução dos surfistas brasileiros no tour. Não compro essa versão: o fim da rotação breca também o sonho da molecada gringa. Ponto.

 

Mas, entre os dois pontos de vista, tendo à defesa da rotação. Talvez eu esteja sugestionado pela lição imposta por Medina, Pupo e John John. Ou talvez esteja influenciado pela sensação de que o circuito com rotação tenha ficado mais vivo, e que o modelo é mais fiel ao mundo real, onde os mais fortes sobrevivem num ambiente com poucas oportunidades.

 

Lembro sempre da última etapa antes do corte, em Nova York, uma das mais instigantes do ano. Simplificando o discurso: a rotação tirou as estrelas do confortável sofá da sala de estar.

 

Não condeno o cancelamento do modelo – acho, sim, que há boas razões de ambos os lados – mas lamento por ser mais uma mostra de fragilidade da ASP. A rotação foi uma das mais corajosas decisões tomadas pela entidade nos últimos anos. 

 

Era um modelo polêmico? Sim. Controvertido? Sim. Incomodava estupidamente os surfistas acomodados na elite? Sim. Mas fez a roda da evolução do esporte girar mais rápido que em toda a década passada.

 

Acho que tendo para a rotação porque eu mesmo tenho grandes dificuldades em ficar estacionado em vaga certa. Acredito piamente na ideia de que a mágica da vida acontece muito longe das estáveis zonas de conforto.

 


Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

 

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".