Leitura de Onda

A construção de um ídolo

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“Adriano de Souza, o campeão da etapa do Rio do CT, está no caminho de Zico.” Foto: Luca Castro / @lucaxiz.

Ídolos, para mim, não são necessariamente fenômenos. Romário, por exemplo, era um gênio da área, mas um cara controverso sem a bola no pé. Zico talvez não tenha sido tão explosivamente genial, embora um craque histórico, mas sua postura com o time, sua abordagem de vida, suas buscas e seus valores contribuíram para que ele se transformasse num Deus para muita gente. Um ídolo de verdade, um guia, uma referência.

Adriano de Souza, o campeão da etapa do Rio do CT, está no caminho de Zico.

A história dramática de infância na favela, os rígidos valores de disciplina, a determinação de um trabalhador, a subversão do clichê do vagabundo, a fé e a humildade estão transformando o surfista do Guarujá num dos ídolos mais genuínos e inspiradores do esporte brasileiro.

Num tempo de crise moral profunda, com a quase renúncia de um presidente e desconstrução da ética de toda a sociedade, Adriano, com seus valores particulares, com sua negação da lógica de Macunaíma, nos faz acreditar, ainda que seja por um momento, no brasileiro.

Ele se apropriou das ondas de seu país, na consagrada Saquarema, impondo-se técnica e taticamente pelo conhecimento, e se alimentou de sua própria torcida, surfando cada vez melhor com o apoio da massa.

Em todas as condições apresentadas em Itaúna, desde a briga contra a pororoca dos primeiros rounds às esquerdas alinhadas do dia decisivo, Adriano surfou certo, com potência e precisão. Usou sua forte ferramenta dos botton-turns, escolheu com inteligência as melhores séries e rapidamente se adaptou ao balanço das pequenas vagas que vinham na direção contrária.
Adriano estava no tempo certo em Saquarema.

Muita gente apostou, até esta semana, que o título de 2015 de Adriano era um evento único, isolado, resultado do esforço visceral de um surfista talentoso, mas, antes de tudo, batalhador, que não estava na fileira dos melhores. Muita gente desenhou prognósticos de títulos mundiais futuros sem o surfista do Guarujá, lembrando apenas dos usuais foras de série. E, agora, depois da vitória, diante de um surfista a cada dia mais completo, de um ídolo maduro?

Não aposte contra tantas virtudes. Enquanto quiser – e, quando ele quer, é de verdade – Adriano vai disputar o título mundial. Não importa o que os outros pensam disso.

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“Em todas as condições apresentadas em Itaúna, desde a briga contra a pororoca dos primeiros rounds às esquerdas alinhadas do dia decisivo, Adriano surfou certo, com potência e precisão.” Foto: Luca Castro / @lucaxiz.

 

Ace Buchan, o vice-campeão da prova, encontrou desde o primeiro dia um caminho limpo para seu refinado jogo de bordas. Nos primeiros dias de evento, o australiano postou que se envolveu numa briga de bar e apareceu na praia com alguns pontos no supercílio. Se houve mesmo uma agressão ou o post foi uma brincadeira não ficou claro. O que importa é que as ondas de Itaúna lhe serviram como um remédio perfeito.

Yago Dora é um forte sopro na continuidade da tempestade brasileira. Combina estilo refinado, modernidade nas manobras aéreas e um carving bem similar ao do americano Rob Machado, além de ser filho de um dos melhores técnicos de surfe do Brasil, o Leandro Grilo. É, sem qualquer exagero, o melhor surfista brasileiro fora da elite, pronto para furar a barreira. A dúvida sempre foi se o surfista, respeitado freesurfer, iria querer. Essa dúvida acabou.

O garoto pareceu não se deslumbrar ou mesmo se chocar com a absurda sequência de três vitórias contra campeões mundiais – o atual, John John Florence, passando por um duelo mortal com Gabriel Medina até alcançar o tricampeão Mick Fanning, sem falar no round 3, contra Kolohe Andino, surfista entre os melhores da temporada de 2017.

O site da WSL bancou o garoto, no título da matéria de capa do site: “Yago Dora has arrived”.

Agora é hora de trabalhar fora dos holofotes, num circuito de acesso dificílimo, disputado em ondas nem sempre afeitas a surfistas refinados. Há um longo caminho e vários eventos de 10.000 pontos pela frente. Depois do show, é hora de mergulhar no longo ano de trabalho.

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“Yago Dora é, sem qualquer exagero, o melhor surfista brasileiro fora da elite, pronto para furar a barreira.” Foto: WSL / Poullenot.

 
De volta ao circo, alguns surfistas se sentiram especialmente à vontade na diversidade de ondas de Saquarema, mesmo com o desafio do backwash.

Matt Wilkinson, que ficou na semi, fez seu segundo bom resultado no ano, alcançando novamente o corte do top 5. Vejo o australiano de Copacabana numa silenciosa luta para chegar, sem alarde, ao fim do ano com alguma chance matemática de título mundial, para vingar a queda vertiginosa do ano passado.

Owen Wright, derrotado para Wilko nas quartas, está no topo da forma. É o surfe mais elegante do mundo atualmente, sobretudo de costas para a onda. Uma aula de como equilibrar manobras contundentes e variadas, transições suaves e um conjunto da obra harmônico. Há quem diga que lhe falta certo power, do que discordo. Como se diz no futebol, quem corre é a bola. Owen faz a prancha correr.

Jordy Smith também parou nas quartas, diante do carving afiado de Ace. O sul-africano faz um bom ano, o que o credencia seriamente ao título, mas em Saquarema esteve abaixo do esperado. A onda power de Itaúna é mais afeita ao surfe de Jordy do que ele pensa.

Mick Fanning, parado por Yago, vinha assombrando em Saquarema. Fez uma de suas melhores apresentações do ano no round 4, realizado no domingo, quando o mar estava pequeno mas ajeitado. Queria tê-lo visto em mais ondas no último dia de competição.

Aliás, o round 4 da competição talvez tenha sido a fase do ano com a maior média de notas da temporada. Dos 12 surfistas na água, apenas dois fizeram somas inferiores a 15 pontos.

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“Gabriel Medina, o campeão mundial de 2014, segue o drama da má fase.” Foto: © WSL / Smorigo.

 
Por fim, Joel Parkinson. No início, mesmo com um tubaço double-up, ele reclamou bastante da pororoca, mas depois rasgou elogios para Saquarema. Parou – parou não, foi atropelado por Adriano. Antes disso, divertiu-se como há muito tempo não se divertia no Brasil.

Entre os brasileiros, destaque ainda para Wiggolly Dantas, que encontra um lar para seu surfe power em Itaúna. Já venceu lá, e parou para Parko por falta de um highscore.

Gabriel Medina, o campeão mundial de 2014, segue o drama da má fase. Perdeu lutando bravamente, mas não esteve entre os melhores surfistas da prova. Só passou da soma de 15 pontos uma vez no evento, no round 4, quando perdeu numa bateria incrivelmente disputada com Adriano e Guigui. Ele nem tem feito médias muito baixas, mas sim abaixo de seu reconhecido potencial. Na sua grande bateria, no round 5, contra Dora, virou a bateria nos segundos finais, mas foi supreendido por uma reação de wildcard sem nada a perder.

Aqui e ali ouvi lamentos de gente que achou o resultado injusto. Se foi ou não, honestamente, não importa. A única saída para o campeão é se reorganizar para recuperar, em todos os sentidos, seu espírito inquebrável de campeão. É fazer renascer o surfista que atropela impiedosamente seus adversários, com placares sempre dilatados e performances chocantes. Não há melhor lugar que Fiji para Gabriel se reencontrar com ele mesmo.

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“As finais foram realizadas com ondas de muito boa qualidade, numa cidade energizada pelo astral do surfe.” Foto: Luca Castro / @lucaxiz.

 
Saquarema viveu entre dois mundos no evento. Iniciou o evento extremamente criticada por conta do backwash e outras questões locais, como o risco de febre amarela, mas, com o tempo, fez valer sua vocação e deu um show. As finais foram realizadas com ondas de muito boa qualidade, numa cidade energizada pelo astral do surfe.

Não há cidade no Brasil com DNA mais recortado pela cultura das pranchas, desde que os festivais ali forjaram a juventude brasileira nos anos 70 e 80. Voltar a ser a sede brasileira da elite mundial foi o melhor presente que a World Surf League poderia ter dado ao surfe brasileiro. A etapa foi bem-sucedida, uma vitória e tanto para o esporte.

Agora, num novo cenário do ranking mundial, Fiji vai pegar fogo. John John está míseros 350 pontos na frente, mas sente o calor de um trio empatado em segundo lugar, com resultados idênticos: Adriano, Owen e Jordy. A temporada precisava dessa disputa saudável.

Ainda teremos a volta de Kelly Slater, em evento patrocinado pela própria marca, que merecerá uma coluna à parte sobre isso.

Que venham os tubos. 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".