Leitura de Onda

Em nome da mãe

Colunista Tulio Brandão conta bela história de vida e morte da mãe de Helen Ewing, mãe do campeão em Bells Beach, e explica o predomínio australiano na última prova do CT.

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Ethan Ewing, campeão do Pro Bells Beach 2023 na Austrália.

Ethan Ewing, o australiano que eu mais gosto de ver surfar, desfilou sua habitual elegância pelas inconsistentes ondas victorianas de Bells Beach e Winkipop para vencer a quarta etapa desta até aqui estranha temporada do WCT.

A vitória do australiano carrega uma daquelas belíssimas histórias prontas: Ethan vence no mesmo palco que sua mãe, Helen Ewing. Ela badalou o sino 40 anos antes, em 1983, quando tinha 18 anos. Helen morreu precocemente, e Ethan cresceu com o troféu da mãe em seu quarto, com o desejo de um dia também gravar seu nome.

Com a vitória, Ethan presta antes de tudo uma bela homenagem à Helen, e os Ewings se tornam os primeiro caso de vitórias de mãe e filho numa etapa do WCT.

A história de Helen, aliás, é um emblema da importância da Austrália para a cultura do surfe. Depois de vencer Bells e o Hang Ten Pro, na Califórnia, em 1983, ela acabou abandonando o circuito mundial por falta de suporte financeiro. De volta à Austrália, com família já constituída, dedicou-se a importantes trabalhos comunitários: fundou o icônico grupo Surfing Mums e presidiu um clube de surfe em Stradbroke Island, o Point Lookout Boardriders.

Ainda nos 90, chegou a competir novamente em eventos nacionais e no WQS, mas nos anos seguintes não resistiu a um câncer de mama. Morreu em 2005, quando o garoto Ethan tinha apenas seis anos. Suas cinzas foram jogadas nas águas de Stradbroke numa cerimônia com a nata do surfe australiano.

Ethan é um filho pródigo e, agora, parte de toda essa bela história. A vitória dele na etapa de Bells, se contada por essa perspectiva, vira uma obra necessária ao surfe.

Mas um fato sempre nos oferece múltiplas perspectivas, como veremos adiante.

O surfe de Ethan é desenhado para as nobres ondas de Victoria: linhas finas, economia de movimentos, transições limpas, jogo de bordas encaixado e fluidez.

O australiano ficou ainda mais confortável ao fazer excelentes escolhas de ondas – na etapa, aliás, houve uma atenção exagerada a esse critério, sobretudo nas ordinárias condições de mar de todos os dias de prova.

E, por fim, jogou rigorosamente dentro dos cada vez mais estranhos critérios de julgamento da WSL, que está cada vez menos sensível a manobras modernas. Assim Ethan, um dos mais refinados representantes da escola clássica do surfe, levou vantagem sobre adversários durante todo o evento.

Ryan Callinan, vice-campeão do Pro Bells Beach.

Na final, venceu sem qualquer resistência o goofy Ryan Callinan, que se virou para sobreviver a um evento com marolas afeitas a regulares. O campeão atropelou, ainda, no caminho, outros surfistas de base esquerda: Gabriel Medina e Owen Wright.

(Aqui uma reverência ao aposentado Owen, dono da mais refinada linha de backside do tour e um espetacular surfista de tubos. Sua técnica fará muita falta na elite.)

Ryan fez uma campanha surpreendente, eliminando dois dos favoritos ao evento. Na semi, venceu o revigorado John John Florence, com um um quase completo full rotation de backside. Nas quartas, interrompeu a trajetória do americano Griffin Colapinto, que parece desde já eleito pela WSL para disputar as finais de Trestles. Griffin não precisa disso – chegará lá, com muitas sobras, pelo próprio surfe.

De volta a Ethan, a semifinal com Filipe Toledo, que surfava com a sua quadriquilha mágica, foi o embate entre os dois melhores do evento. Filipe pegou ondas de menor qualidade, com mais contundência. Ethan escolheu as melhores ondas, e surfou de modo seguro, forte e preciso, com movimentos bem colocados em todas as manobras.

Filipe Toledo faz ótima bateria contra Ethan Ewing, mas fica na semifinal.

Venceu o australiano, na etapa mais icônica da Austrália, com muito surfe e elegância, mas também com uma nota sobrevalorizada – não dá para esconder.

Aquele 8,43 é inexplicável, embora nota menor e mais justa possivelmente não alterasse o resultado. Talvez a explicação esteja no mesmo lugar em que aparecem apenas australianos entre os finalistas no masculino e no feminino.

Não lembro a última vez uma só bandeira esteve no pódio de finalistas nas duas categorias. Entre os homens, a última final 100% australiana aconteceu justamente na primeira vitória de Ethan, em J-Bay, ano passado, quando derrotou Jack Robinson. Mas, no mesmo evento, entre as mulheres, a brasileira Tatiana Weston-Webb foi a vencedora, derrotando Tyler Wright na decisão.

A mensagem da temporada está cada vez mais clara: joguem todas as fichas no surfe de borda e esperem pelas melhores ondas. Abandonem o surfe progressivo – esqueçam, por exemplo, aquele alley-oop que rendeu a última vitória de Kelly Slater em Bells, há 13 anos. E, claro, rezem para defender a bandeira da etapa.

Gabriel Medina perde para o campeão da etapa nas oitavas.

Bells ampliou o drama de dois campeões mundiais, Gabriel Medina e Italo Ferreira. Gabriel segue cercado pelo fantasma das oitavas-de-final. Desde o início do ano, ele se depara com surfistas que lutam por vagas em Trestles nessa fase. E, em todas, saiu derrotado. Perdeu, pela ordem, para Jack Robinson, duas vezes para Griffin Colapinto e, agora, para Ethan Ewing. Não tem jeito. Para voltar a vencer, será preciso vencer adversários fortes, com quem ele poderia disputar finais, em fases preliminares.

A situação de Italo Ferreira é ainda mais grave. Enquanto Gabriel, pelo menos até Portugal, vinha mostrando boa forma durante o evento, o potiguar tem sofrido para reproduzir o surfe de anos anteriores, especialmente o de 2019, ano de seu título. A uma etapa do corte, ele ainda não está perto de alcançar a classificação matemática para o resto do ano. E decidirá a vaga numa onda em que jamais venceu.

Já John John conseguiu escapar dessa barca de campeões mundiais sob risco com o justo terceiro lugar em Bells, e segue, agora, para a etapa em que seu surfe é mais dominante no tour. Não demora, entra no grupo de Trestles.

No caminho de Bells, o havaiano venceu, em sua melhor bateria, Michael Rodrigues, que surfou muito bem na prova e só ficou nas oitavas-de-final porque John John fez um milagre nos minutos finais de bateria.

João Chianca assume a liderança do ranking pela primeira vez na carreira.

A eliminação precoce de Jack Robinson deu a João Chianca, com apenas um nono lugar, a chance de assumir pela primeira vez a liderança da temporada de 2023. Chianca segue em grande forma, numa temporada afeita a seu surfe. E o melhor, para o orgulho de Saquarema: as duas ondas da próxima etapa, Main Break e The Box, parecem encaixar nas medidas técnicas do novo líder do circuito mundial.

Agora, vamos a Margaret, vamos ao infame corte.