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Você é o meu herói

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Kelly Slater não precisa de um circuito mundial para mostrar o quanto todos estão muito atrás dele. Foto: Divugação Quiksilver.

“Você é o meu herói”.

 

 

A frase, dita pelo jornalista da ASP ao fim da entrevista obrigatória do campeão, revela como é difícil competir no mesmo universo de Kelly Slater. 

 

Num esporte subjetivo e altamente suscetível à influência de símbolos, ser o melhor surfista do mundo aos 40 anos, a caminho do 12º título, que conquista a 51ª vitória da carreira 20 anos depois da primeira é como ter um canhão numa guerra com estilingues.

 

Não é só isso. O poder se torna incontrolável, brutal, com a incrível capacidade de Slater de reinventar o esporte, de surpreender o mundo. E, quando os astros não estão ao seu lado, ele ainda bota em jogo outras duas armas letais: tática e competitividade extrema.   

 

 

Slater acha os tubos em qualquer condição de mar. Foto: Divugação Quiksilver.

Em Fiji, ele venceu com sobras, de forma arrasadora, incontestável. Em Trestles, deu um jeito de aparecer na final e ficar com o caneco. E, agora, na França, assombrou a todos pela incrível capacidade de ajuste a um dos mares mais difíceis da história da prova. Um monstro.

 

 

Alguém vai levantar a bola das quartas de final, alguém vai lembrar o confronto entre o americano e Ace Buchan. Sim, foi uma disputa apertada. Sim, Ace ganharia se fossem os juízes zumbis imparciais, desconectados dos símbolos do esporte e da influência do público.

 

Mas não são. Slater provavelmente também é o herói deles, o que é belo e, ao mesmo tempo, trágico para o esporte. Assim, o mito gera um filho bastardo: a necessidade de se criar concorrentes, ainda que por vezes seja através de notas

Campeão de tudo, Slater vai pra galera. Foto: © ASP / Kirstin.

turbinadas pela ordem do mercado.

 

 

E assim segue o surf, tão imperfeito quanto fascinante.

 

Chamou-me a atenção o desabafo de um de meus sete leitores ativos, o Renato Mansour, que, como tantos de nós, combina um sentimento de admiração e raiva em relação a Slater. Segue abaixo a carta dele logo após mais uma conquista do americano: 

 

“Eu, um ex-quase ainda talvez surfista, idoso, 45 anos nas costas, que pulava pra lá e pra cá nas baladinhas do Mamão com Açucar ao som do RPM e Paralamas do Sucesso, teoricamente deveria defender e parabenizar o semi, quase, talvez idoso Kelly Slater pelo mais recente feito.

Cof, cof… desculpe… engasguei…  Engasguei na minha incapacidade de acreditar que ninguém consegue superar esse gringo “fedaputa”. Medina ?  Não!  JJ ?  Não!  Joel?  Porra, Joel!  Você está surfando o fino, cara! “Cumequi” não vira em cima do Slater? 

 

Confesso que estou cansado de Kelly Slater.  O cara é um monstro.  Sem duvida.  Um gigante de proporções inomináveis.  Achei que sua performance em Trestles não foi merecedora de um troféu. Muitíssimo aquém disso. Posso listar 10 adversários superiores, diretos ou indiretos. Chegou ao ponto de parecer que fosse um favorecimento explícito.

 

Mas em La Gravieres não foi o caso. O Slater mostrou valor num mar difícil, onde eu jurava que os brasileiros fossem se sobressair.  Aliás, se eu acordasse para surfar num mar daqueles, por opção, eu nem entraria! Correnteza, água gelada, 90% das ondas fechando… 

 

Bem… Voltando ao assunto. Kelly.  Qual é a desse cara?  Qual é a dificuldade de fazer frente a ele? Será que ele vendeu a alma para o capeta?  Será que o Andy Irons foi o último (e único) a desafiá-lo?  Parece que todo mundo que surfa contra o cara míngua. Sofre. Amarela.

 

Bem, não tenho explicações.  Sou pela ciência, e ainda não coletei as informações necessárias que suportem uma tese embasada. Kelly é foda. Só isso. Difícil de engolir.  A maioria dos tops da ASP é foda, mas o Kelly é super mega fodaço pra cacete. Odeio admitir isso.  Mas é verdade. Quando ele quer, ganha. Ninguém no tour tem, hoje, essa capacidade, essa maturidade. Infelizmente. Saudades do AI. Pelo menos ali havia um verdadeiro adversário.”

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.


 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".