Leitura de Onda

Velha polêmica de roupa nova

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ASP implanta o antidoping com o objetivo de zelar pela imagem do surf. Foto: Bruno Lemos / Lemosimages.com.

A coluna da semana passada, sobre drogas e doping, provocou reações distintas em meus 12 fiéis leitores. Uns defenderam o texto, outros criticaram, com o argumento de que eu não poderia ser favorável à exclusão das drogas recreativas do exame antidoping.

 

 

O texto tinha outro foco: jogar uma luz no risco existente em leis que dão muito espaço à subjetividade. Comparava a história da interpretação da lei que fala em “fundada suspeita” para revistar carros com os critérios subjetivos de escolha de atletas para o antidoping.

 

No meio do caminho, achei importante me posicionar sobre as drogas recreativas, no que se referia ao exame antidoping. Alguns leitores falaram em apologia, mas passei longe disso. Decidi, portanto, dissecar meu ponto de vista sobre o tema. 

 

Sobre a inclusão das drogas recreativas no antidoping: o exame surgiu para coibir o uso de substâncias que possam beneficiar paliativamente o rendimento do atleta. Drogas recreativas, especialmente o álcool e a maconha, não contribuem para a performance. 

 

Portanto, o antidoping assume um caráter que não é seu na origem: torna-se um exame moral e, no caso das drogas ilícitas, legal.

 

Com isso, a Wada (World Antidoping Agency) extrapola as suas funções técnicas. Vira uma espécie de guardiã da lei e dos costumes, sem ter poder para isso. Minha opinião vale para todos os esportes (salvo casos excepcionais, como automobilismo), não apenas para o surfe. 

 

É importante lembrar que a lista de substâncias proibidas da Wada está repleta de drogas que alteram o rendimento, lícitas, disponíveis nas melhores lojas do ramo, no mundo.

 

Há diversos estudos sobre o tema na internet. Para quem quiser se aprofundar, sugiro a leitura de uma dissertação de mestrado sobre maconha e antidoping.

 

No entanto, vale acompanhar de perto o trabalho da ASP este ano. A política da entidade em relação a drogas recreativas tem pontos interessantes. Prevê, entre outras coisas, um tratamento de reabilitação para surfistas flagrados com essas substâncias.  

 

Sobre o antidoping em surfistas: sou favorável ao exame para drogas que alteram o rendimento. O esporte vem mudando de cara nos últimos anos. Os garotos viraram atletas, e chegam mais saudáveis à elite, dando uma cara nova ao surfe. Não há momento melhor para iniciar o antidoping e construir uma nova imagem para o esporte. Nem acho que a meta deva ser agradar o movimento olímpico, e sim construir imagem para os novos fãs do esporte.

 

Sobre drogas recreativas e competidores: não sejamos hipócritas. O esporte tem um longo histórico de proximidade com drogas recreativas. Não faltam casos de surfistas destruídos por elas. Minha posição é absolutamente crítica em relação ao uso de drogas por competidores.

 

Sou contra, declaradamente. O leitor deve estar desconfiando de incoerência no discurso, mas verá que há uma diferença, uma linha tênue, entre ser pessoalmente contra o uso de drogas por atletas e admitir que um órgão de antidoping extrapole suas funções.

 

O mercado deveria ajudar a regular essa questão. Discordo, por exemplo, de uma empresa que mantém na equipe um atleta que se acaba nas baladas com as roupas da marca. E, se o caso for de dependência, bons patrocinadores devem intervir de uma maneira direta, trabalhando incisivamente pela reabilitação do surfista, antes de qualquer passo adiante na carreira. De uma certa forma, os resultados também servem como filtros reguladores: a curva negativa de rendimento de atletas com problemas com drogas é visível.

 

Sobre drogas recreativas e a lei: minha visão é a mesma das de Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton. A política atual, de guerra contra as drogas, está falida em todos os sentidos. Governos gastaram fortunas em operações de repressão policial, mas, a cada traficante preso ou morto, surge outro.

 

A lógica da oferta e da demanda parece ser invencível no capitalismo. Sempre houve e sempre haverá, em todas as culturas do mundo, demanda por substâncias que alteram a consciência. A venda não vai acabar.

 

Neste cenário, droga se torna uma questão séria de saúde pública, a ser trabalhada com políticas eficazes de educação e prevenção (como as do cigarro) e com políticas de redução de danos para as substâncias mais agressivas.

 

Não sou louco de dizer que podemos, do dia para a noite, descriminar todas as drogas. Essa distensão deve ser cuidadosa, lenta e criteriosa, sobretudo porque vivemos em uma sociedade desacostumada a usufruir da liberdade.

 

O livre arbítrio é um ideal difícil de ser alcançado. Mas, como FH e Clinton, penso que a maconha, por ser a substância menos agressiva entre as proibidas, poderia ser regulada, taxada e desestimulada dentro do pacote de drogas lícitas. 

 

Visão pessoal sobre drogas recreativas: não sou usuário de qualquer droga ilícita, mas trata-se de uma escolha. Confio no livre arbítrio, na capacidade de julgar o que faz bem ao meu corpo. Tenho amigos que convivem de maneira saudável com drogas ilícitas, tenho amigos que foram destruídos (ou tiveram potenciais comprometidos) por elas.

 

Eu bebo um chope ou uma taça de vinho – essas escolhas me dão prazer, são permitidas e nunca me fizeram mal. Mas também conheço muita gente com a vida destruída ou manchada pelo uso abusivo de álcool.    

 

Sobre a PM: este tópico eu escrevo em deferência a um dos leitores da última coluna, que é policial militar. Queria dizer que não tive a intenção de ofendê-lo (ou a corporação). Se você notar, não me refiro apenas a PMs, e sim a PMs corruptos ou mal intencionados.

 

Exemplos positivos como o seu certamente não se enquadram no texto. Meu paradigma são as diversas experiências que tive com policiais corruptos no Rio, mesmo não sendo usuário de drogas. Vida longa, saúde e muito surfe na veia aos bons policiais militares brasileiros.


Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".