Leitura de Onda

Um surfista mortal

0

 

Kelly Slater dá um banho técnico, tático, físico e psicológico em Joel Parkinson na final Quiksilver Pro. Foto: © ASP / Kirstin.

Kelly Slater está condenado a adjetivos superlativos, extremos. É chamado de ET, super-herói, monstro, careca imortal. Já até disseram – só as más línguas, claro – que o cara fez pacto com aquele que não se diz o nome, na linha da lenda que cerca o guitarrista Robert Johnson.

 

O americano, que venceu de forma magnífica a etapa de abertura do WCT 2013 aos 41 anos, às vezes parece mesmo ter características sobre-humanas. E cada atuação fora da curva reforça a sua condição de mito, de surfista inalcançável. 

 

Um olhar cuidadoso permite ao mundo do surfe trazer Slater de volta à fantástica condição de mortal, de um competente e dedicado mortal. Quando chamam o campeão de ET, querem, na verdade, reunir numa só expressão todas as suas características.  

 

O melhor a fazer é abrir essa caixa, é desconstruir o mosaico vencedor que define este surfista.

 

O talento é a primeira peça. Slater nasceu com dom absurdo, e sabia disso, desde garoto. Disse, certa vez, numa entrevista: “Aos 7 anos, percebi que tinha alguma coisa especial, que meus amigos não tinham”. 

 

No início, contra a geração dos 80, ele dominava todas as manobras convencionais, e as executava em todas as ondas, de forma limpa e em sequência. Hoje, para assustar a turma dos anos 2010, ele oferece um cardápio de manobras aéreas rotacionais digno de um moleque sem nada a perder e nada na cabeça, além de uma técnica de tubos perfeita.

 

A dedicação é peça fundamental. Slater, aos 41 anos e com 11 canecos na mala, ainda treina abnegadamente nas melhores ondas do mundo. Apareceu na Austrália em forma. 

 

E isso foi sempre assim. Aos 14, teve sua primeira experiência no North Shore. Desde então, esteve sempre onde o mar oferecer um desafio, um aprendizado.

 

O preparo físico de um surfista de 41 anos provavelmente define seus resultados. É o caso de Slater. Quem está na casa dos 40 tem uma ideia mais precisa de como é assustador o preparo desse atleta. Na final de Kirra, num mar com correnteza, o americano parecia nitidamente mais preparado que Joel Parkinson, surfista dez anos mais novo.

 

Seu posicionamento no mar é fora de série. Na semifinal, na mesma Kirra, contra Mick Fanning, ele passou parte da bateria muito para dentro no pico. Não saía dos tubos. Aí, identificou o ponto certo do line-up em que poderia remar numa onda quadrada e, usando suas habilidades, sair numa onda nota dez. Tirou o 10.

 

A estratégia cerebral e o espírito competitivo de Slater assustariam Sun Tzu. Para vencer, ele é capaz de qualquer coisa. Ou quase. Como outros grandes, de outros esportes. Criticou publicamente Adriano de Souza, por marcar implacavelmente seus adversários, mas entrou na onda de Parkinson para impedir sua virada na final. 

 

Nada contra o uso da prioridade, que está na regra, mas é curioso ver postura tão competitiva de alguém que criticou a competitividade alheia. O simbólico é que esse comportamento, por vezes incoerente, é visto em outros grandes campeões. 

 

O carisma de Slater faz com que torcedores adversários esqueçam derrotas de seus compatriotas para reverenciá-lo. Na saída da água, em Kirra, uma multidão australiana queria simplesmente tocar no surfista, quase como um Dalai Lama. 

 

A experiência é o arremate de todas essas características. Slater está há mais de 20 anos no tour. Passou por todas as circunstâncias imagináveis, e sabe como lidar com cada uma delas.

 

Ele pode virar uma bateria nos segundos finais e sabe evitar que um adversário faça isso. Pode entubar mais profundamente que seus adversários porque aprendeu, com o tempo, a lidar com a instabilidade da bola de espuma que derruba os inexperientes e a regular a velocidade da prancha dentro do tubo. 

 

Pode dar uma entrevista arrasadora, e sabe usar muito bem essa arma. Ou pode, simplesmente, ficar em silêncio.

 

Slater é o mais mortal dos surfistas e, contraditoriamente, um surfista mortal. Não um ET. 

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.  

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".