Leitura de Onda

Um golpe silencioso?

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Neco Padaratz exibe todo o power de seu surf durante a etapa do mundial na praia da Vila, Imbituba (SC). Foto: Ricardo Altoé.

Períodos de transição são naturalmente frágeis. Sempre. De um porto seguro ao outro, às vezes navios encaram um inesperado mar turbulento. Golpes de Estado costumam derrubar democracias justamente em mudança de governos.

 

A maioria esmagadora dos acidentes aéreos aconteceu na saída ou no retorno ao solo – ou seja, na transição do solo para o ar. E, para não ir muito longe, o índice de crimes no Rio aumenta na troca de plantão da polícia. 

 

Pois o surfe vive, este ano, o seu perigoso período de transição. É o momento em que uma onda surfada de modo convencional por Taj Burrow, com arcos semelhantes aos executados 12 anos atrás, quando o australiano estreou no tour, pode ganhar a mesma pontuação que uma performance freak e absolutamente inovadora de um Dane Reynolds. Para isso acontecer, basta haver uma certa boa vontade do palanque. 

 

Também é o momento em que surfistas um dia considerados modernos – como Neco Padaratz – podem ser degolados pelos juízes. O sacrifício se dá em nome da tal transição, da mudança de paradigmas.

 

A ASP decidiu que alguns surfistas representam o passado. Mas corre o risco de vê-los recusando o incômodo selo de ultrapassado com luta. Pode ser o caso de Neco.

 

As notas altas dos velhos ídolos podem ser justificadas pela manutenção prudente das verdades estabelecidas. Os melhores de sempre, por enquanto, continuam a ser os melhores.

Já as notas baixas –  justas ou não – entram na conta da inevitável chegada da nova ordem do surfe. Ai do surfista comum que não tiver, no seu repertório, alley oops e rodeo clowns.

 

Um discurso afinado que sai de várias fontes – até mesmo de nós, jornalistas – dá respaldo às decisões na transição. Taj é um exemplo claro disso. Na locução em inglês de Bells, comentaristas e locutores de peso repetiam como um mantra que o aussie estava na melhor forma da vida, surfando mais que nunca.

 

Suas três vitórias consecutivas desde o fim do ano passado eram vendidas como naturais, e seria quase inevitável mais um trunfo.

 

Então, vamos às vitórias: em Pipe, ele venceu Kelly Slater numa final com ondas indignas para aquele palco. O segundo título foi em Burleigh Heads, no Breaka Burley Pro, que nada mais é que uma etapa WQS 4 estrelas.

 

Na primeira parada do WT, na Gold Coast, ele reapareceu em forma, acertando seus bons arcos e rasgadas, com alguns aéreos. Nada de novo, apenas fazendo o certo bem feito, como tantos outros.

 

Não foi o melhor surfista do evento – Jordy Smith e Dane se sobressaíram. Mas ganhou muitas notas acima de oito, entre as quais algumas exageradas. E acabou levantando mais um caneco.

 

Em Bells, ele parou na semifinal em Mick Fanning, mas o release da Billabong tratou de renovar o mantra. “Com um surfe mais afiado e rápido da sua carreira, Taj venceu o seu igualmente quente parceiro de equipe Andy Irons…”, escreveu o assessor.

 

Taj é um grande surfista, mas seu surfe não se transformou a ponto de apavorar um top 5. Tem as virtudes e defeitos de sempre. Taj está, sim, em excelente forma física. Mas há muitos outros bem preparados. Joel Parkinson, Slater e até Adrian Buchan, só para citar alguns, levaram seus preparadores físicos para a praia na Austrália.

Mas Neco também é um bom surfista, e seu surfe não regrediu a ponto de não poder mais competir contra um top 5. Suas rasgadas merecem uma revisão, sim, com mais uso de bordas enterradas. Talvez ele também precise variar mais o repertório. Mas o velho e bom power está intacto, assim como o espírito guerreiro.
 
As reclamações ostensivas de Neco durante baterias – vistas como desnecessárias – fazem algum sentido. Ele sentiu que virou bode expiatório da tal transição, quando as velhas regras valem para alguns e as novas, para outros. Sabe que, se não gritar agora, não grita mais.
 
Taj, que até hoje era líder do circuito mundial, perdeu nesta quarta-feira precocemente no round 3 da parada brasileira do tour. Foi derrotado sem direito a apelação, na última e melhor onda do sul-africano Travis Logie. Neco também caiu. Perderia de qualquer modo, mas viu novamente suas notas presas à bem amarrada corrente do ano de transição da ASP.  

 

Tulio Brandão é repórter de O Globo, colunista do site Waves e da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe


Uma nota do autor

Caro Henrique,

Entendi o questionamento de você em relação à suposta contradição existente no texto. Ocorre que em nenhum momento disse que o surfe de Neco era moderno, atual. Está claro para mim – e para os juízes também, imagino – que a performance do catarinense está defasada.

O que questiono é o selo que ele ganhou estampado na cara, de ultrapassado. Com isso, ele perde antes mesmo de entrar na água. Algumas de suas ondas importantes têm sido subvalorizadas no julgamento.

Não sei se ele será capaz de fazer como alguns de sua geração – que reinventaram o próprio surfe – mas, enquanto isso não acontece, merece pelo menos um julgamento justo, balanceado.

E, se ele conseguir se reinventar, se conseguir corrigir os erros que o afundam, pode, sim, eventualmente, vencer um top e disputar dignamente o tour. Tem talento.

Por falta de tempo, não costumo responder comentários, mas achei que você colocou um ponto importante, que poderia sim, gerar outra interpretação do texto. E fez isso com educação, que é o mais importante.

Paulo, Gustavo, Savério, Fernando, Lucas, Eduardo e Zezão: obrigado pelos comentários. 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".