Leitura de onda

Um ano, 54 colunas, muitas ondas

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Leitura de onda, uma leitura obrigatória para quem curte um texto maneiro. Na foto, Tulio Brandão exibe seu talento nas ondas da Indonésia. Foto: Arquivo Pessoal.

Uma coluna por semana, sobre tudo o que cerca uma ilha chamada surf: o convite do editor do site, Alceu Toledo Júnior, também conhecido como Juninho, era antes de tudo um desafio à inspiração. Topei na hora, comprei a ideia de que a gente produz mais conteúdo quando é pressionado por prazos. Até porque, não fosse pelo compromisso, diante de uma rotina de trabalho oficial opressora, eu não escreveria nem a metade disso.

 

Nas 54 colunas escritas nos últimos 12 meses, tentei surfar em ondas variadas: World Tour, brasileiros no cenário mundial, julgamento, ondas grandes, vitórias e derrotas, meio ambiente, clima, outras modalidades de surf, mercado, além dos dois principais personagens do ano passado: Kelly Slater e Andy Irons. Um dos temas, no entanto, repercutiu especialmente: a experiência do surfista comum. Usei minha história e a dos amigos para tentar reconstruir o mundo imperfeito e rico de quem pratica o esporte sem esperar contrapartida.

 

Para comemorar a primeira velinha – ou as primeiras 54 velinhas, porque cada coluna é uma vitória – recortei alguns trechos que, de alguma maneira, sintetizam essas colunas. Dividi as citações por temas, para facilitar a leitura, ou melhor, a Leitura de Onda.

 

Andy Irons

“Andy Irons andou um tempo com ares de Lex Luthor. Saiu de cena com problemas pessoais e, na volta, encarnou o campeão Billy Flynn de Franco Zefirelli. A história de superação do herói derrotado que se reconstroi é tão recorrente quanto inspiradora. Do outro lado do ringue, já há quem veja Andy de luvas.” Coluna “Um monstro reabilitado”, no dia 15/09/2010.

 

“Kauai, anos 80. Eu lembro da primeira onda que surfei. Fui para a esquerda, para a direita, para a esquerda, e a onda jamais quebrou. Pensei na hora: foi a experiência mais legal da minha vida. Nunca me esquecerei dessa onda, até o dia em que eu morrer.” Coluna “Força aos Irons”, no dia 04/11/2010.

 

“O que eu mais queria mesmo era ver a última onda da família Irons, com um Bruce vingador homenageando o irmão. Mas a vida real é crua, não respeita os sonhos de um mundo ideal – do contrário Andy Irons não estaria morto, e sim dentro d´água.” Coluna “O novo e o velho, de novo”, no dia 22/12/2010.

 

Brasileiros no cenário mundial

 

“Quando Jadson nasceu, Slater já era maior de idade e estava prestes a entrar no Tour. Do alto de seus 38 anos e nove títulos mundiais, o americano deve ter engolido em seco ao ver um garoto de 19 anos, o mais novo surfista da elite, voando limpo para impressionar juízes e tirar de suas mãos o caneco da etapa de Imbituba.” Coluna “O milagre de Jadson”, no dia 30/04/2010.

 

“É exatamente este o momento da revolta na caserna, como manda o manual do rebelde. Chega um soldado raso, indolente e, sem acreditar nessa história louca de hierarquia, derruba o poderoso general. Jadson André fez exatamente isso na batalha da praia da Vila. As estrelas douradas reluzentes no ombro do americano só instigaram o garoto abusado.” Coluna “Revolta na caserna”, no dia 08/06/2010.

 

“Adriano de Souza foi, como quase sempre, o melhor do Brasil. Se a ASP fosse uma escola, Mineiro seria um dos melhores alunos, um clássico CDF. Os juízes pedem carving na cavada e durante a manobra, ele executa. Manobras aéreas, em dia. Reverses podem ser notados em quase todas as ondas. Velocidade, ele tem de sobra. Até as ondas tubulares o garoto dominou.” Coluna “A vingança dos mortais”, no dia 11/05/2010.

 

“Adriano sabe que, seguindo a velha fórmula do trabalho duro, a hora vai chegar. Não tem motivo para duvidar do sonho: afinal, carregou sua mochila de combate com talento, comportamento exemplar e paciência para aprender com os mais experientes.” Coluna “Revolta na caserna”, no dia 08/06/2010.

 

“Tanto no surf de Raoni quanto no de Léo, a onda de Itaúna transparece. Os arcos são bem executados, a linha é afeita à onda power. É como um selo, ou mais que isso, uma dádiva que os dois levarão para a água enquanto estiverem vivos. Itaúna, um topônimo de origem indígena que significa “pedra preta”, merece ser reverenciada.” Coluna “Ode à  pedra preta”, no dia 09/12/2010.

 

“O quinteto é mesmo de ponta. Talvez seja o primeiro grupo em que todos são capazes de superar a lacuna imposta pelo passado nos fundos de areia do quintal de casa.” Coluna “Geração pós beach break”, no dia 24/02/2011.

 

Kelly Slater

 

“(Slater) Fez como os acrobatas de circo franceses do passado, que antes de uma apresentação mais ousada, que deixaria o público em suspenso, gritavam: “allez-hop!”, que seria alguma coisa como “vamos saltar!”. Não por acaso, daí veio a expressão “Alley-oop”. Na outra encarnação, Slater deve ter trabalhado no circo. E encantado plateias.” Coluna “Allez hop!”, no dia 14/04/2010

 

“O imbatível está ali para ser batido, senão não tem graça.” Coluna “O dia da coroação”, no dia 19/10/2010.

 

“Kelly Slater conquista o histórico, mágico e inigualável décimo título mundial dias depois de seu único algoz da vida morrer estupidamente num quarto de hotel. Tudo numa semana só, com uma intensidade difícil de ser processada.” Coluna “O perene”, no dia 08/11/2010.

 

“Na vida real, Kelly Slater parece um surfista preso a um dia da marmota muito particular e confortável. Ele acorda todos os dias e vence, há muitos anos.” Coluna “O dia da marmota”, no dia 02/03/2011.

 

Vitórias e derrotas

 

“Jordy foi julgado à altura de seu surfe, que equilibra o velho carving (necessário na direita de Jeffreys) com manobras aéreas. Numa ou noutra nota, pode ter sido sobrevalorizado na conta da mudança de critérios da ASP, mas mereceu levantar seu primeiro caneco em casa, ao som noisy das vuvuzelas.” Coluna “O bastão está no ar”, no dia 21/07/2010.

 

“Para o surfista maduro, deve ser frustrante. Ele luta toda a vida para aprender um modelo do esporte, persegue em treinos diários a perfeição e, quando a atinge, dá de cara com o monstro da evolução quase instantânea das manobras. Muitas vezes, tenta alcançar o novo paradigma, mas seu chip está condicionado ao modelo anterior.” Coluna “A maldição do tempo”, no dia 25/08/2010.

 

“Bede preferiu largar a fama e os dólares de mais uma etapa pelo mundo da paternidade. É uma das coisas insubstituíveis da vida. Um clichê, mas uma sensação realmente sem preço.” Coluna “Bede, um raro homem comum”, no dia 29/09/2011.

 

Julgamento

 

“O surfe vive, este ano, o seu perigoso período de transição. É o momento em que uma onda surfada de modo convencional por Taj Burrow, com arcos semelhantes aos executados 12 anos atrás, quando o australiano estreou no tour, pode ganhar a mesma pontuação que uma performance freak e absolutamente inovadora de um Dane Reynolds. Para isso acontecer, basta haver uma certa boa vontade do palanque.” Coluna “Um golpe silencioso?”, no dia 28/04/2010.

 

“Quem não é amparado pelo seed nas primeiras etapas praticamente ganha um carimbo para a segunda divisão. Além de estar pressionado por resultados imediatos – sob pena de ser rebaixado no meio do ano – o atleta é obrigado a encarar desde as primeiras fases os melhores e mais bem julgados surfistas do mundo.” Coluna “Corte na carne fraca”, no dia 28/07/2010.

 

“Mineiro, Pelé é realmente o Pelé. Mas sua derrota para Taj tem uma cara de vitória parecida com os golaços não marcados pelo Rei. É um desses resultados negativos que entram para a história e pavimentam o caminho para conquistas futuras.” Coluna “Sobre Pelé, Mineiro e Slater”, no dia 09/03/2011.

 

“É difícil dizer onde acaba a coincidência e começa o preconceito – se é que há preconceito. O fato é que desde que Townend foi o primeiro campeão mundial de surf, em 1976, todos os títulos foram conquistados por surfistas conterrâneos dos criadores do circuito ou por seus co-irmãos de países da língua inglesa – África do Sul, Estados Unidos e Reino Unido.” Coluna “Os criadores do jogo”, no dia 18/03/2011.

 

World Tour

 

“Sou carioca do Pontão, e defendo o Rio até amarrado a uma mesa de bar na Mooca, sob tortura. Mas, fosse eu manda-chuva na ASP, minha escolha seria Fernando de Noronha.” Coluna “A volta da surf city”, no dia 11/08/2010.

 

“Na ressaca do término do maior evento esportivo da história da África, a etapa do World Tour de Jeffreys Bay vira uma caravana mambembe. Apesar do abismo entre a organização dos dois esportes, os confrontos entre os tops do mundo têm tudo para serem mais atraentes que os quase sempre enfadonhos jogos da Copa de 2010.” Coluna “A Copa da África começa agora”, no dia 14/07/2010.

 

Mercado

 

“(O site Waves) Sobreviveu à euforia, à bolha, à crise de 2008 e principalmente ao avanço de um grande grupo de comunicação, que investiu maciçamente num site de surf para tomar o posto do Waves de portal mais lido do esporte.” Coluna “Um site de estimação”, no dia 28/10/2010.

 

Ondas grandes

 

“Para o low profile Danilo, baiano que aprendeu a surfar na praia de Barravento, a evolução foi um prêmio muitas vezes silencioso, percebido inicialmente apenas pelos seus pares de line-up. Discreto, só aparecia quando os editores se curvavam às suas perfomances fora da curva.” Coluna “XXL: a vez de Danilo”, no dia 06/04/2011.

 

“Carlos Burle é um surfista especial. Não falo da inquestionável habilidade em ondas grandes, reconhecida pelos melhores do mundo. A diferença do cara está na cabeça. Burle é um sujeito com inteligência fora da curva: entende a onda, calcula os riscos, mantém a calma.” Coluna “A espera”, no dia 10/02/2011

 

Outras modalidades de surf

 

“De uns meses para cá, passei a reparar, no caminho entre a cidade febril e aquelas plácidas ilhas, pequenos pontos solitários remando em pé sobre pranchas enormes. Senti uma ponta de inveja e a certeza de que aquelas pessoas viviam, no meio do oceano, numa frequência totalmente diferente do ritmo frenético das metrópoles.” Coluna “Um SUP entre dois pontos”, no dia 18/02/2011

 

Meio Ambiente

 

“São Conrado vive o abismo entre dois mundos. De um lado, estão alguns moradores de um dos bairros mais caros do Rio, com IPTUs estratosféricos, para quem a praia significa apenas a vista; de outro, surfistas (locais ou não) e moradores da Rocinha, tratados como categorias inferiores de cidadãos, historicamente inconvenientes aos olhos do poder público tradicional.” Coluna Oração a São Conrado, no dia 07/01/2011

 

Clima

 

“Tudo indica que, sim, a costa Sul do Brasil tem sofrido com tsunamis meteorológicos. As praias do Pântano do Sul e da Armação, em Florianópolis, foram atingidas pelo fenômeno no dia 19 de novembro do ano passado. O mar, que estava calmo até então, invadiu restaurantes, arrastou barcos para dentro das ruas e sugou carros para a praia.” Coluna “Fim do mistério: o tsunami do Brasil, no dia 04/12/2010.

 

A experiência do surfista comum

 

“Tive a famosa conversa com o diretor de país da empresa, e negociei que só trabalharia onde pudesse surfar. Ele gostou e me disse que assim seria. Digo que assim está sendo, e assim será enquanto houver uma onda e um surfista”, contou o surfista bom de cálculo. Coluna “A prancha na mesa”, no dia 30/03/2011.

 

“Quando eu sair da água, pensei, tenho que botar a prancha na mesa e negociar com o mundo real: eles precisam entender que eu preciso surfar com mais frequência para ser um bom profissional fora da água.” Coluna “Um Pontão real”, no dia 24/03/2011.

 

“O primeiro trampo foi de terno e gravata. Do dia para a noite, saí do short e chinelo para a roupa de doutor, estagiário num escritório de advocacia no Centro. O saudoso Mestre, porteiro do meu prédio da infância, mudou o tom ao me ver como um pai de família que paga prestações de um Corcel 73: deixou o surpreendentemente carinhoso “olha o respeito, moleque” para adotar o duro “boa noite, doutor”.”   Coluna “A firma”, no dia 23/06/2010.

 

“Penso nas campanhas publicitárias, vídeos e viagens vendidas graças à ideia de que o que dá sentido ao surf é a busca, a busca pela onda perfeita. Não discordo (e acho o conceito genial), mas emendo: um surfista mortal espera muito mais que busca. Espera o trabalho acabar, espera o fim de semana chegar, espera a mulher concordar, espera a filha brincar, espera o vento virar, espera o swell entrar, espera a onda chegar.” Coluna “A espera”, no dia 10/02/2011

 

“Bife era um mendigo diferente. Não se ligava tanto em dinheiro, mas tinha uma obsessão por shorts. Estava sempre com um diferente na praia, graças à sua amizade com a molecada da classe média lebloniana. A história de sua mania pela vestimenta logo se espalhou, e foi aí que a coisa pegou: vasculhavam armários para ter a honra de alimentar Bife com um short.” Coluna “O mendigo que dava esmolas”, no dia 05/08/2010.

 

“Como um pai surfista, eu deveria deixar que elas tivessem seus próprios sonhos, sejam lá quais forem. Afinal, tanto no mar quanto na vida, uma onda nunca é igual à outra. Há ondas parecidas, mas, iguais, não. Se um dia elas quiserem realmente pegar onda, eu estarei lá para ensiná-las alguns atalhos importantes. Se quiserem ser jornalistas, também vou poder ajudar. Se quiserem ser cientistas, astronautas, poetas, bailarinas ou cantoras – e se essas opções ou quaisquer outras forem os seus sonhos  – estarei lá, disposto a tudo para torná-los realidade.” Coluna “A melhor onda da vida”, no dia  02/06/2010.

 

“Ir surfar a pé ou de bicicleta, encontrar todo mundo pelo caminho, jogar conversa fora entre uma onda e outra, acertar a manobra só porque você conhece de olhos vendados a curva que a onda faz ao quebrar, perceber a diferença sutil dos tons de azul do céu e as sombras do Morro Dois Irmãos, acertar o horário de migração dos biguás e, claro, passar a vida sobre uma prancha, perto de casa: são presentes que só um quintal pode dar.” Coluna “Quintal de casa”, no dia 25/05/2010.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

Nota da Redação Caro Tulio, é uma grande alegria publicar sua coluna, um espaço nobre do Waves para discutir o esporte em altíssimo nível. Você é um caso raro de jornalista que surfa com as palavras como se estivesse muito à vontade nas direitas do Leblon. Leitura de Onda é aquela leitura obrigatória para todos que vão além da arrebentação em busca de uma manobra mais inteligente. Nós só podemos agradecer, valeu! (Alceu Toledo Junior) 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".