Leitura de Onda

Tubo de esgoto

0

Leblon, altas ondas e… merda para todos os lados. Foto: Luiz Blanco.

Anos 80. Eu não tinha mais que 13 anos e surfava 26 horas por dia. O quintal, como alguns de vocês sabem, era um microcosmo do mundo real chamado Pontão.

 

No Leblon daquela década, longe das novelas, o saneamento de nossas águas era tão eficiente quanto os planos econômicos e as moedas cheias de zero. Para ser curto e grosso, tinha merda para todo lado. 

 

Em tempo seco ou chuvoso, o caldo marrom do esgoto dominava o pico. Alguns amigos, garotos podres e inocentes, brincavam de jogar uns nos outros os ratos inchados de água, que surgiam flutuando ao nosso lado depois das chuvas. Volta e meia, aparecia cadáver, camisinhas, até sofá.

 

Mas quem estava sempre lá, antes do primeiro surfista, era o esgoto.

 

Convivíamos com isso. Como já disse certa vez na coluna, a imagem era a de um garoto da periferia que joga bola descalço sobre um lixão, por falta de opção. A condição dada, para quem ama alguma coisa, é a condição aceita. Fiquei tanto tempo dentro d’água que contraí hepatite e vivi bons anos marcado por micoses e outras doenças de pele. 

 

Corta para 2007. Jornalista e surfista escaldado, eu trabalhava numa reportagem sobre a escandalosa obra de saneamento da praia de São Conrado, que consumiu milhões do nosso bolso e, depois de inaugurada, piorou – isso mesmo, piorou – a qualidade da água no local.

 

Durante a apuração, deparei com um professor de surf da Rocinha todo marcado por micoses na pele. Um herói, que mantinha longe do crime dezenas de crianças, mas não tinha como afastá-las das doenças de veiculação hídrica, causadas por administradores públicos omissos. Boa parte de seus alunos sofria com micoses ou alguma outra doença contraída no esgoto.

 

O tempo passa, mas o saneamento não muda. Quem pega onda em São Conrado continua recebendo descargas criminosas de esgoto mesmo em tempo seco, depois de dias de estiagem. No Leblon, há mais propaganda de saneamento que dias próprios ao banho. 

 

A atual administração do governo estadual anunciou um plano para solucionar a questão em algumas praias do Rio, entre as quais o Leblon e São Conrado. Todo o apoio do mundo a ações de despoluição dessas águas.

 

O Rio não merece o castigo de ser mal saneado. E digo isso sem pensar em Jogos Olímpicos: essa é uma dívida da administração pública com os cariocas.

 

Há esgoto “in natura” e problemas em todo o Brasil. Aos surfistas, cabe fiscalizar, denunciar. Fazer como João Malavolta, da ONG Ecosurfi, e outros surfistas, que viajaram de ônibus até Brasília para protestar contra a aprovação do novo Código Florestal, que afrouxa perigosamente a proteção dos manguezais, e contra o lançamento de esgoto nas praias. 

 

Ou, simplesmente, fazer como o surfista Ricardo de Jesus, local de São Conrado, que usou a força do You Tube e das mídias sociais para denunciar, por vídeo, o lançamento de esgoto em frente ao pico e a degradação absoluta daquela praia.    

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.   

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".