Leitura de Onda

Pastori em dois tempos

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Conheci Gabriel Pastori anos atrás em Asu, ilha de Sumatra descolada do mundo, num canto perdido do Oceano Índico.

Eu, nesta altura com 30 e poucos e pai da primeira filha, me imaginava vivendo no limite, uma experiência extrema. 

 

No caminho, dormi no chão do aeroporto de Kuala Lumpur, quase afundei numa tempestade monçônica em Nias, por pouco não fui proibido de embarcar pranchas no avião. Passei toda a sorte de perrengues, ao lado de um amigo, Rodrigo Schmidt. 

 

Isso tudo para chegar ao paraíso, uma ilha recém-empenada por um dos maiores terremotos da história, na borda mais ativa do anel de fogo, que tremia dia sim, dia não, e, dizia-se à época, era área preferencial da temida malária cerebral. 

 

Lá, fiquei hospedado num surf camp iluminado por um gerador que tinha que ser desligado no meio da noite, num quarto quente, sufocado por um repelente de selva.

 

Tudo por causa de uma esquerda mágica, com pouco crowd, que escorria pelo coral raso. 

 

Pois quando eu estava lá, certo estar perto de ser quase um herói, quase um personagem de “Second Thoughts”, de Timmy Turner, encontro o garoto Gabriel, que deixara a Austrália, onde havia morado por três meses, para ir surfar sozinho em Asu. 

 

Não foi com amigos, não ficou no “conforto” do surfcamp, como nós e os outros mortais da ilha. Preferiu um cômodo no sótão da casa de madeira de um local, a um preço menor que simbólico, inconcebível no ocidente, mas justo naquela pequena ilha com 30 habitantes.

 

Lembrei-me de Gabriel porque esta semana vi um vídeo de surf, “Fugindo do crowd”, em que ele é uma das estrelas. A história tem elementos semelhantes à experiência de Asu, e, na apresentação dos personagens, Pastori é apresentado como o solucionador de problemas.

 

Resgatei, na última gaveta, o bloco de viagem de Asu – repórter anota tudo o que vive. E lá estava um trecho de uma história vivida por Gabriel, que revela muito de sua personalidade pacífica, agregadora, capaz de encontrar soluções em momentos difíceis.

 

Na primeira casa que ficou, em Asu, o patriarca da família começou a ter problemas sérios com álcool. Gabriel decidiu sair e, quando voltou, a situação estava fora de controle. O pai queria bater em alguém. Gabriel tirou as duas crianças de casa para protegê-las do pai.

 

Foi para a casa de outra família e passou a noite em claro, tentando se comunicar com as crianças e confortá-las, numa língua que ele não entendia. 

 

No pouso original, o bêbado surrava a mulher. Ele fora apresentado ao álcool por australianos, que lhe presentearam com um aparentemente inocente engradado de cerveja.

 

Distante da cultura ocidental, o povo nativo de algumas pequenas ilhas da Indonésia, intocado, resiste tranquilamente aos piores tipos de malária, mas muitas vezes não está preparado para enfrentar os efeitos mais leves do álcool.

 

Gabriel salvou as crianças do descontrole do pai. “Foi uma experiência extrema, sobretudo para um garoto de classe média do Rio de Janeiro. De repente, me vi completamente afundado na cultura deles, comendo com a mão e tudo. Criei um vínculo, aprendi muito.”

 

A aquela altura, então um garoto que tinha acabado de passar no vestibular, ele tinha vários dilemas na cabeça, comuns a muitos surfistas, como a opção de ser profissional ou não.

 

Seis anos depois, formado em jornalismo e freesurfer contratado, ele parece ter feito a escolha certa. Garantiu seu futuro longe das ondas, mas continua por perto, em busca de experiências como as de Asu, que vão muito além dos quilômetros de tubos surfados.

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.


 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".