Leitura de Onda

Os insistentes

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Aldemir Calunga, o cabra potiguar. Foto: Bruno Veiga / Liquid Eye.

Sou um surfista egresso dos anos 80, do tempo das pranchas verde-limão, das roupas de borracha espalhafatosas, de Curren x Occy, do short da Tico. Hoje, minha geração está na casa dos 40, fascinada com a evolução do esporte, numa fase em que muitos comemoram o fato de ainda estarem na água, mas outros tantos começam a admitir que não pegam mais onda.  

 

A justificativa rotineira para a desistência é a falta de tempo: o trabalho apertou, a prole cresceu, as contas chegaram, o braço murchou, a barriga cresceu, a mulher reclamou. Isso acontece, e é verdadeiramente sufocante para quem ama as ondas.

 

Eu mesmo sou vítima de boa parte desses sintomas. A remada está mais débil que nunca, o corpo sobrevive fora do peso e o tempo é escasso como sempre. Ainda não consegui, como alguns amigos afortunados, adotar uma rotina que me mantenha em forma física e técnica. 

 

O curioso é que hoje não vejo mais a ameaça de me tornar um não-surfista, embora esteja surfando com uma assiduidade baixíssima. Se não dá para estar na água, vejo o mar, leio e escrevo sobre o tema, converso com amigos sobre a última etapa do tour. 

 

É um pouco como a cenoura na frente do burro. Se ela estiver ali, ao alcance, o burro continua andando, ainda que ele não consiga alcançá-la. O que o move é o desejo, a fome. 

 

No surf, não é diferente: o que move o surfista eventual de 40 é a fantasia, é a sensação de que, em algum momento, ainda que duas ou três vezes ao ano, ele vai fazer uma sessão inesquecível com amigos e tirar o limo de suas pedras.

 

É dali, daquela sessão, que surge o fôlego da vida, o brilho nos olhos, o encantamento que espanta quem nunca pegou onda.

 

De um extremo ao outro, me impressionou especialmente na última semana a história de Aldemir Calunga. O cara ficou cinco minutos apagado debaixo d’água e, por obra de Deus e de alguns anjos cascas-grossas, como Marcos Monteiro, ele renasceu, ressuscitou. 

 

Não lhe faltariam motivos para abandonar o barco. O drama de Calunga não é a falta de tempo do amador, e sim a experiência da quase-morte. O limite de seu corpo foi testado de uma maneira absurda. Tem muito piloto de Fórmula 1 que abandonou as pistas por muito menos.

 

Mas o cabra potiguar é bravo. Em entrevista ao jornal “Diário do Nordeste”, Calunga mostra que, se você ama mesmo alguma coisa, não pode puxar o bico. 

 

“(…) O que mais me chamou a atenção foi que você parte para o outro mundo muito rápido. Eu estava tão bem preparado para surfar aquela onda e, num deslize mínimo, você desmaia, não tem mais controle nenhum, fica embaixo d’água (…) mas estou aí e já estou preparando a próxima viagem para daqui a 15 dias.” 

 

Diante de uma história dessas, qualquer outro motivo para abandonar o surf vira piada. 

 

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".