Mar doce lar

Olhos de cristal

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Guilherme Gross enternizado em Cartão postal em Ipanema. Foto: Rick Werneck.
Quem espera ler mais um texto emotivo, aconselho parar por aqui. Desta vez me dedico a falar do amor pelas fotos de surfe… Principalmente aquáticas.

 

Lembro-me claramente de como surgiu minha paixão pela fotografia. Entre os 11 e 14 anos de idade, morava com a família na Inglaterra. Nas férias, rebocávamos um trailer ou acampávamos por todos os extremos da Europa – da Noruega à extinta Iugoslávia – em busca de cultura.

 

Meu pai, embora não fosse fotógrafo, tinha uma máquina fotográfica alemã, Petri, com três lentes, uma 28mm, uma 55mm e uma 135mm. Declarei-me herdeiro daquele equipamento e o

O talento de Gross para oa tubos emplacou capa na revista Fluir. Foto: Reprodução.
carregava com orgulho por centenas de igrejas e castelos do velho continente.

 

De volta a Londres, projetávamos as fotos na parede e ali, no meio da semi-escuridão, minha mente voltava à viagem que havíamos feito e ao mesmo tempo embarcava numa nova viagem, que definiria o meu futuro.

 

Desde o início, minha relação com a fotografia foi de puro prazer. A alegria de ver uma foto revelada foi o motivo que me fez começar e que me faz fotografar até hoje.

 

O dinheiro, embora necessário, vinha em segundo plano. Quando descobri que fotografando poderia viabilizar duas grandes paixões da minha vida, viajar e surfar, lancei-me ao mar.

 

Tem gente que não consegue entender como uma pessoa que surfa pode optar por ser fotógrafo de surfe, se sujeitando a abrir mão de pegar altas ondas em picos perfeitos pelo planeta, para registrar a alegria dos outros.

 

Para estas pessoas eu explico: enquanto um surfista fica eternamente extasiado com as ondas que pegou em Macarronis, Jeffreys, Pipeline, Tavarua ou Grajagan, nós fotógrafos somos capazes de ficar até seis vezes mais felizes com as mesmas ondas.

 

Não acredita? Pois continuo a explicação: fotógrafo de surfe fica muito feliz quando consegue fotografar ondas clássicas. Depois fica mais feliz ainda quando vê que a foto saiu alucinante. Fica feliz de novo quando vê a cara de alegria da pessoa que estava na onda, quando ela se vê na foto.

 

Quando a foto é publicada em alguma revista, o fotógrafo fica feliz de novo. Quando chega o cheque com o pagamento da foto, fica feliz mais uma vez. Finalmente, quando o editor da revista liga dizendo que quer te convidar para outra viagem, pois você trouxe altas fotos da última trip, aí você fica muuuito feliz. Até porque, a gente sabe que sempre tem aqueles dias nublados que dá pra surfar o dia inteiro.

 

Minha primeira foto de surfe foi feita de dentro d’água, na praia Vermelha do Norte, em Ubatuba, onde havia montado uma barraca com amigos, no extinto camping que havia por lá, em abril de 1981. Desde então, fotos aquáticas têm sido minha verdadeira paixão.  Prefiro estar totalmente, e literalmente, envolvido com a ação a estar distante, sozinho na areia.


Dentro d’água pode-se interagir com o surfista para se conseguir fotos que revelem sua expressão e o ambiente em volta.  A partir daquela foto, comecei a traçar meu destino e a enxergar o mundo através dos cristais das lentes.

 

Trabalhar com um surfista que entenda as necessidades do fotógrafo aumenta as chances de se conseguir uma boa foto. Nesses 23 anos de estrada encontrei dois, com quem realmente me entendia muito bem: Julio Adler e Guilherme Gross. Julio merece uma coluna inteira, então vou falar do Gross.

 

Tem gente que gosta do surfe do Guilherme e tem gente que não gosta. Para mim, tem algo que não dá pra discutir: ele pega muito tubo e ponto final. Para a direita então, nem se fala.


Certa vez ele pegou um tubão em Backdoor que deixou todos na praia atônitos. A onda devia ter uns 10 pés e Guilherme dropou meio atrasado, mas conseguiu se ajeitar e pegar um tubo cabuloso. Talvez o tubo da vida. Quem duvidar, é só pedir para ele mostrar a fita com as imagens.

 

Mas enfim, falava eu da parceria que construímos. Sempre que o mar ameaçava ficar clássico, a gente se falava por telefone. De manhã ele conferia do Arpoador ao Pepino enquanto eu checava as ondas do Quebramar até Grumari. Quando achávamos um pico perfeito, vazio, – durante a semana no Rio isso ainda é possível – nos ligávamos e partíamos com vontade para dentro d’água.

 

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Este tubo na Prainha de Gross também virou postal. Foto: Rick Werneck.
Nossa especialidade era as fotos aquáticas de tubos quebrando para a direita. Esta fórmula nos rendeu quatro capas, uma abertura de matéria, um pôster central, um pôster para seu patrocinador, a decoração de dois postos do Salva Mar no Rio de Janeiro, três cartões postais da Cidade Maravilhosa, um prêmio e um “mouse pad” da Red Bull, um pára-sol de carros para a Skol, e fotos no calendário da Telefônica, na revista My Rio, numa matéria sobre fotografia que fizeram comigo e, ainda este mês, uma foto na revista de bordo da Varig, Ícaro.

 

Já cheguei a ficar quatro horas dentro d’água na Prainha, num dia de muita corrente, para conseguir uma foto de um tubo do Guilherme no

Posto do Salva Mar, em frente ao Barramares, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Foto: Rick Werneck.
dia mais clássico que eu já vi neste tradicional pico carioca, mas valeu a pena.

 

Hoje em dia uma parceria assim é difícil construir. Não por causa das ondas, mas por causa dos surfistas. Embora a nova geração venha para mudar o rumo do surfe, com suas manobras aéreas, ela parece mais preocupada em colar adesivos na prancha do que garantir retorno de imagem ao patrocinador.

 

Já perdi a conta de quantas vezes ouvi uma molecada do Rio, que têm meu telefone, dizer que surfou altas ondas e esqueceu de me ligar. Tá certo que eu também tenho que correr atrás dos caras, mas se eles estão vendo altas ondas e vão cair no mar, não custa me ligar.  Já disse que pode até ligar a cobrar, mas não adianta, é uma questão de consciência.

 

Não gosto muito de fotos tiradas da areia com tele objetiva porque qualquer pessoa que esteja passando pela praia pode ver o mesmo visual. Minha busca é por ângulos que nem mesmo quem está dentro d’água, surfando, consegue perceber. Gosto quando perguntam: “Como você conseguiu esta foto?”.

 

Muita gente me pergunta se eu parei de fotografar, pois já não publicam muitas fotos minhas. A resposta é NÃO! Assim mesmo, com letras maiúsculas. Não parei nem vou parar, pois como já disse, o que me levou a fotografar foi o prazer e enquanto eu tiver prazer, eu vou continuar fotografando.

 

O que acontece é que o mundo está ficando pequeno e a oferta está aumentando muito. As revistas hoje têm acesso a fotógrafos do mundo inteiro que despejam aqui suas fotos “reject” ganhando mais do que brasileiros com muito mais talento, simplesmente porque fala inglês.

 

Tem ainda a politicagem interna, mas esta nem merece ser mencionada porque a paixão de um fotógrafo de surfe supera tudo isso, muito embora talentos como Beto Paes Leme tenham que carregar turistas pelo Rio de Janeiro para poder pagar as contas e sobreviver.

 

Caras como o Clemente Coutinho – para mim o melhor fotógrafo de surfe do Brasil – deveriam ganhar muito bem, pois nos brindam com imagens maravilhosas de lugares às vezes infestados de tubarões, para levar os leitores a sonhar de dentro da segurança de seus lares. Como um sujeito desses, com tanto talento e disposição, ainda tem que se preocupar com o futuro?

 

Por isso, hoje em dia ando surfando mais do que fotografando.  Principalmente depois que construíram um píer bem em frente à minha casa, e meus filhos começaram a surfar.  Porém, confesso que me incomoda bastante ver tanta onda boa e não registrá-las. Mas, abandonar a fotografia… Jamais!!!

 

Há cerca de dois anos, estava em Fuschel Am See, uma pequena cidade da Áustria, perto de Salzburgo. Tinha ido participar da minha primeira reunião depois que entrei para a equipe internacional de fotógrafos da Red Bull.

 

Durante os quatro dias de encontro falamos de tudo sobre fotografia. Da parte técnica à parte emocional. De filmes e equipamentos a ângulos e luzes. Todos mostraram seus trabalhos e falaram de suas especialidades e ambições. Além de mim, havia fotógrafos da Áustria, Suíça, Itália, África do Sul e Alemanha.

 

Certa altura me dei conta que embora falássemos línguas diferentes, tínhamos uma língua em comum: a fotografia. Ali, tão distante do mar, enquanto falava do fascínio que tenho pelo tempo que leva para se registrar uma imagem (uma foto de ação geralmente é feita em um quinhentos avos de segundo, ou seja, um segundo dividido por quinhentos) e da paixão que tenho por estar no mar fotografando surfe, me bateu uma inspiração e comecei a rabiscar os versos de uma música que depois gravei e que resume esta minha eterna paixão.

 

Com ela encerro esta coluna. (Clique aqui e confira o clipe de uma apresentação da banda Santa Máfia, de Rick Werneck, durante um show em Fortaleza).


Olhos de Cristal

(Rick Werneck)

 

O mar me chama
Levanto da cama
Sonho vira realidade,
Diversão

 

Seguindo o instinto,
Saio faminto
Emoldurando luz da vida
Emoção

 

Um quinhentos avos de segundo
Momento congelado, revelado para o mundo.

 

Meu coração é azul
Os olhos de cristal
Retrato alegria
Em água e sal
 
O movimento
Da onda contra o vento
Magneto que acelera
A pulsação

 

A utopia
Dessa magia
Meu destino, estrela guia,
Minha paixão