Leitura de Onda

Olho amarelo

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Jornal Correio mancheta papel dos surfistas na derrubada de muro em Salvador. Foto: Reprodução.

A primeira vez que pensei em sustentabilidade eu tinha 15 anos e estava com o olho amarelo. Era hepatite, contraída no esgoto que jorrava sem tratamento nem vergonha pela praia do Leblon. A obrigação de repouso fez um moleque indignado, privado de seu maior prazer, refletir: “Por que diabos esses políticos safados não tratam o esgoto da cidade?”

 

Os mais velhos e acomodados me retrucavam sempre com a pergunta: “Mas por que você foi cair exatamente na zona de esgoto?”. Na época, eu não tinha resposta. Hoje, apelo para Earl Wilson, falecido jogador de baseball e frasista profissional. “A experiência é aquilo que lhe permite reconhecer um erro quando você o comete de novo”. 

 

Antes que me atirem uma privada, é preciso discutir de verdade a questão do esgoto. Sim, aquele mesmo, que você gera em casa. Seus impostos deveriam ser usados para um tratamento que evitasse a contaminação de nossas águas de rios, lagos, lagoas e mares.

 

Mas não. Nunca foi assim. A chamada agenda marrom, que se refere às questões ambientais urbanas, como a poluição da água, jamais foi tratada com respeito. 

 

Para o poder público, saneamento de área consolidada, urbanizada, não dá voto, é obra muito cara e pouco percebida, a não ser por quem sofre suas consequências mais nefastas: pobres que vivem às margens dos valões, de rios transformados em canais de esgoto, além de surfistas e banhistas. Mas esses são poucos, eles pensam.

 

O raciocínio simplista esconde um erro perverso e simbólico do subdesenvolvimento: o de reduzir, a um público local, pequeno, os impactos de agressões ambientais. 

 

Na verdade, toda a sociedade sofre – e paga muito caro – pela poluição. A qualidade ambiental é uma condição indispensável à qualidade da vida humana. Baías, lagoas e rios contaminados representam muito mais que o olho amarelo de um surfista. 

 

Um ambiente saudável representaria um ganho considerável na saúde pública, com menos enfermidades como doenças de veiculação hídrica; um impulso inédito no turismo (quanto valeria, por exemplo, uma Baía de Guanabara limpa?); e, para não me alongar muito, uma qualidade de vida muito superior para a população. Sem isso, nada faz sentido.

 

Os surfistas, embora não sejam os únicos, são protagonistas importantes na novela da poluição das águas. Representam o extrato da população que mais contato tem com a água contaminada, fora aqueles que não têm escolha. 

 

A classe, contrariando a turma do preconceito, tem o poder de se organizar. Nos anos 80, os surfistas do Rio impediram a construção de um resort na Prainha, com manifestações públicas e muita ação.

 

Um exemplo fresquinho vem da Bahia: os locais de Stella Maris, com o apoio do site SurfBahia, forçaram o poder público a derrubar um muro irregular na área conhecida como Padang Padang. Após liminares e embargos, a construção foi demolida no último sábado. 

 

Na primeira página do jornal “Correio” de hoje, um dos mais importantes da Bahia, o título: “Vitória do exército do surfe”.  Outras virão, com certeza. Só depende da gente.

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.  

 

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".