Leitura de Onda

O guarda-vidas

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Suicida e guarda-vidas rigoroso protagonizam resgate inusitado no Pontão do Leblon (RJ). Foto: Luiz Blanco.

Era um Pontão mediano, coisa de um metro e meio. Dia nublado, praia vazia, uma típica terça-feira de fim de outono.

 

As ondas corriam em seu ritmo tradicional, com séries eventuais se erguendo atrás da pedra, disputadas à faca por não mais que uma dúzia de surfistas, o que mesmo para o canto do Leblon dos anos 80 era boa notícia.

 

A gente se acostuma ao som do quintal de casa: o barulho do estouro da onda na pedra, os berros dos mais exaltados na disputa pelas melhores do dia, os ônibus subindo a Avenida Niemeyer ao fundo. Um barulhinho bom.

 

De repente, um grito estridente, não familiar aos ouvidos ingênuos de um garoto de praia, atravessa o espaço do Leblon.

Um suicida, era um suicida. O cara tinha descido pelo Mirante do Leblon e se posicionado na beira de um penhasco, pronto para se lançar no mar na primeira série que apontasse no horizonte. Se caísse ali, seria amassado nas pedras. Antes de morrer, ficaria todo ralado.

Uma morte patética, mesmo para um suicida. Aliás, todo suicídio tem um quê de patético, sobretudo para um garoto de 15 anos, cuja alma está dominada pelo prazer do surf.

O raciocínio raso – ou nem tanto – era o seguinte: por que o cara não larga a mão da morte e vem pegar onda? Tá bom, seria mais um a infernizar no crowd, mas valeria uma vida.

Estava eu com meu raciocínio obtuso quando escutei um grito diferente. Desta vez saía de dentro d´água, do meio do crowd. Era um tom impositivo, certeiro, duro porque era preciso: “Estou avisando: se pular, vai entrar na porrada!”, berrava o guarda-vidas, antevendo que seu surf no curto horário de folga estava prestes a afundar com o suicida.

 

Diante da hesitação do cara que tiraria a própria vida ali, na frente de todo mundo, ele insistiu, num discurso pausado, como se quisesse ter a certeza de que a mensagem seria entendida: “Vai-entrar-na-porrada!”
O crowd ficou em suspenso, sem saber se a ameaça surtira efeito, diante da imagem de um sujeito frágil, com olhar perdido no horizonte, à beira de um abismo.

Veio a série. O crowd, que só queria saber de curtir a vida, disputou como sempre a melhor onda, enquanto o garoto perdia a atenção que despertara naquele grupo de bom vivants.

Parecia o fim. Na segunda onda a escorrer na pedra, ignorado pelos surfistas e pelo mundo, ele finalmente saltou no vazio. Caiu estatelado nos ouriços, ralou-se por inteiro. Estava correndo tudo dentro do planejado, dentro da perversa lógica de um suicida.

A frágil alma só não sabia que o autor das ameaças tinha como ofício e vocação salvar vidas. Na frente daquele guarda-vidas, ninguém morreria. Quando já estava submerso, quase afogado e repassando toda a vida numa centelha de segundo, o suicida foi arrancado violentamente debaixo d´água para cima da prancha de seu salvador.

Era o guarda-vidas, no meio da folga interrompida. Olhou para a cara ralada do suicida sem nenhuma pena.

 

Tascou-lhe uma sucessão de tapas na cara. De longe, só pude perceber que o olhar daquele homem frágil, antes perdido e sem vida, ganhara, de medo ou susto, um brilho. Cheguei a me perguntar, dentro d´água, se algum dia ele tentaria se matar de novo.

 

O guarda-vidas deixou o suicida em segurança com o colega que estava a serviço, pegou a sua prancha e voltou sedento para a água, em busca das últimas séries que escorreriam na pedra antes de acabar seu horário de folga.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".