Espêice Fia

Noronha é hábito

0

Noronha pra mim é hábito. Mas, dependendo do ponto de vista, não posso dizer que para o custo-benefício seria o melhor lugar, pois a depender da distância de onde se pega o primeiro voo ou da quantidade de dias e do local em que se hospeda, é mais caro do que fazer uma surf trip internacional.

 

Em compensação, o dinheiro gasto não se perde, ou seja, traz retorno a quem investe. No meu caso e de outros surfistas profissionais e aspirantes, é um ótimo investimento para os patrocinadores. Nunca fiz uma viagem na vida para aquele local que não rendesse no mínimo uma foto muito boa. Certa vez fui em uma trip e rolou um dilúvio. Mesmo com o teto cinzento, a prancha amarela e a água clara renderam uma página dupla. Antigamente, se escutássemos falar que algum fotógrafo iria pra ilha, começava-se um corre-corre de nego querendo ir e muita gente ia mesmo. Há dois anos sem o Hang Loose Pro Contest, a ilha perde seu segundo ou terceiro boom de turismo. Os primeiros seriam o réveillon e talvez o Carnaval.

 

Passamos três semanas tentando arrumar alguns profissionais para essa nossa barca que rolou em fevereiro, e inacreditavelmente ninguém se mostrou disponível. Alguns tinham compromissos competitivos, outros não conseguiram verba do patrocinador e outros talvez até tenham subestimado nossa trip. Com swell e no mínimo matéria para revista especializada garantida, com certeza valeu o investimento. Não é todo dia que se marca uma trip e o swell entra em cheio. É bem verdade que as ondas de Noronha às vezes fecham demasiadamente, mas mesmo em mares fechando, pode-se pegar a onda da vida.

 

O local Patrick Tamberg mostrou por que é o melhor noronhense na atualidade. Ele, que atualmente mora em Natal, quando soube da nossa trip embarcou rapidamente para ser o melhor surfista na água. As ondas estavam difíceis na Cacimba, mas Patrick achava as melhores e mais abertas todos os dias. Conhecimento é tudo e no dia em que o Hang Loose ou outro WQS voltar, certamente ele será candidato ao título. Foram bem divertidas as duas semanas na ilha na companhia de Alexandre Ferraz e dos fotógrafos Clemente Coutinho e  Renato Tinoco.

 

Xandinho sempre instigado e botando pra baixo. Clemente e Renato, como sempre, dando a pilha pra turma despencar e botar pra dentro do canudo em frente às suas lentes. Tivemos os reforços do big rider Marcos Monteiro, que pegou boas cracas, e do paraibano Raphael Seixas, que mandou uns aéreos e surfou tubos com maestria.

 

O gaúcho Lucas Di Nardi também teve seus bons momentos, mostrando que no sul do País a turma entuba e sabe pra caramba também. Me impressionou o surf versátil de Brayner, moleque local do Boldró que está evoluindo rápido. Por lá, tivemos também um reforço nas imagens gravadas pelo videomaker Felipe Queiroz. Esse moleque vem fazendo boas edições nos vídeos, mas, quando entra na água, também faz um ótimo trabalho no surf. Foi assim em um fim de tarde mágico e liso, quando Felipe entrou quase ao escurecer e pegou os dois melhores tubos do dia.

 

Eu me sinto em casa em Noronha. As pessoas são muito acolhedoras, tenho ótimos amigos e fico amarradão quando vejo essa galera em bons momentos. O surf no Abras, apesar de balançado, foi mágico. É difícil pegar aquela onda. Levei algumas vacas durante a trip e machuquei o joelho, que já vinha um pouco bichado. Mesmo assim não saía da água, até porque, uma vez ali, tinha de aproveitar.

 

Na semana de pré-Carnaval, surfamos com umas máscaras apresentadas pelo bodyboarder Adriano Silveira, que toca um projeto chamado  “No Calor das Alfaias” e havia adquirido com um artesão pernambucano, dando valor à cultura da sua terra. Foi um desafio surfar com as máscaras tendo o campo de visão reduzido. E elas só duraram quatro ondas, pois eram de papel marche e cola branca. Entrei junto com Xandinho, e a máscara dele nem chegou direito ao outside. Peguei três marolas com a que eu estava e repassei ainda inteira para o pernambucano. Mas sua tentativa foi extrema e, ao colocar pra dentro do tubo em uma onda maior, a máscara também se desfez. Valeu a diversão.

Durante os dias perambulando pela ilha, visitamos o primeiro e único shaper local, Hudson Felipe. Já faz tempo que o cara vinha consertando as pranchas da galera, mas há cerca de dois anos vem arrebentando também nos shapes. Com uma ótima linha, já aceita encomendas para todo o Brasil. No entanto, fabricar pranchas em Noronha requer jogo de cintura, pois muitas vezes Felipe vê-se com atraso de material, já que tudo vem do continente e em Noronha as paradas são sempre mais difíceis.

Cacimba no café, Cacimba no almoço e Cacimba quase no jantar, pois os fins de tarde estavam bonitos. Em um deles, até casamento teve. Maior visual os noivos recebendo a benção e o pôr-do-sol por trás do Morro dos Dois Irmãos.

Mesmo sem o crowd estar demasiado, muitos surfistas de fora no line up. Boas cenas aqui, outras ali, mas o show foi mesmo de Ítalo Ferreira, que já se encontrava em Noronha quando cheguei. Ele saiu antes do swell, mas as sessões que presenciei das suas manobras foram épicas. Êita, moleque pra voar. Incríveis os aéreos que executava. Havia vários outros fotógrafos na ilha, além dos que foram comigo: Cosme Johnny, Rildo Iaponã, Marcelo Freire, Ricardo Altoé, Alexandre Janotti e, como todos também na maioria fazem suas imagens em vídeo, o mais novo videomaker daquele pedaço é Alan Rangel.

Figura conhecida por dropar as cracas e entubar com maestria, Alan foi visto com seu tempo dividido entre um surf forte e a captura de imagens. E como quase todos os surfistas locais estão sempre presentes, vale mencionar Caia e Dudu Sousa, tio e sobrinho, respectivamente. Quando estão na água é sempre aquela zoação, completada também por Adailton, mais conhecido como “Buday”, que desde o ano passado vem se empenhando em surfar as ondas grandes, sempre na expectativa de pegar as bombas da Cacimba e, se der, faturar algum prêmio por surfar a maior onda do Brasil (este texto foi escrito antes de Buday vencer o prêmio Greenish na categoria Maior Onda).

Esta temporada foi meio atípica. A turma não presenciou ondas enormes, e ventos muito fortes atrapalharam alguns swells. Mesmo assim, Noronha é Noronha e não tem trip para o arquipélago que não renda. Nem que seja uma prancha partida ao meio, pois serve como experiência.

Fábio Gouveia
Campeão brasileiro e mundial de surfe amador, duas vezes campeão brasileiro de surfe profissional e campeão do WQS em 1998. É reconhecido como um ícone do esporte no Brasil e no Mundo. Também trabalha como shaper.