Bom de Bico

Movidos pelo pranchão

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Todo esporte é movido pela paixão. A ligação que o longboard tem com a cultura do surf pesa para que a relação seja um pouco mais intensa. Apesar de não termos uma escola clássica como na nostálgica Califórnia, incorporamos o espírito, mesmo com um estilo mais arrojado adequado para nossas ondas. 

 

O longboard identifica-se com o lado lírico do surf e o Brasil percorreu uma trajetória que seguiu essa tradição. A dedicação insana de Picuruta Salazar e de Amaro Matos nos circuitos brasileiro e mundial por tanto tempo, com premiação baixa e um calendário pra lá de incerto sugerem um envolvimento mais emocional do que lógico.

 

Também não estaríamos com a mala cheia de histórias se não fosse a entrega de caras como Carlos Mudinho, famílias Paioli e Mansur, Otávio Pacheco, Rico de Souza, Daniel Friedman, Vitorino James, Ronaldo Hipólito (Pardal), Marreco, Paulo Sefton, Cisco Araña, Reinaldo Andraus (Dragão), Bruzzi, Hélio Coquinho, Luis Juquinha, Evandro Balalai, Bernardo Mussi, Marcelo Bibita, João Leite, Neco Carbone, Cláudio Pastor, Delton Menezes, Giba, Márcio Vilela, Jorge Mula, Olimpinho, Paulo Kid, Marcelo Árias, entre outros.

 

Isso sem falar nos legends das décadas de 50 e 60. Mas é essa a galera que eu vi bem envolvida depois da retomada dos pranchões nos anos 80.

 

A relação que algumas pessoas tiveram com a modalidade ultrapassou os limites de um hang ten e foi determinante para registrar uma parte importante da história do longboard tupiniquim. O site Hanging Together e a revista Longboard Brasil foram criados por Rafael Sobral e Twunay, respectivamente, dois típicos longboarders responsáveis para dar o fôlego que a modalidade precisava para seguir adiante.

 

Sobral é um daqueles longboarders que tem técnica natural e sempre buscou influências ecléticas na sua linha de surf. Mesmo tendo o DNA do longboarder brasileiro, usa os fundamentos clássicos com muito feeling. Isso o ajudou a ser completo e a conquistar um titulo paulista em 1994. Em 1999, ele revolucionou a falta de informação sobre os pranchões com muito talento e criatividade, enquanto muitos ainda se acostumavam em surfar na web.

 

O Hanging Together extrapolou com as mais modernas ferramentas tecnológicas. Apesar de ter sido uma ideia conjunta com seu irmão Nei Sobral e o shaper Neco Carbone, quem ia para o front era mesmo o Rafael, hoje webmaster do Waves, que acompanhava a galera nas competições nacionais e internacionais, trips e sessions.

 

Ele filmava tudo e colocava no site. Falava nossa língua com o diferencial de quem vivia aquilo intensamente. Foi uma loucura, de repente tínhamos mais do que imaginávamos, aquilo aproximou os praticantes, havia muita troca de informação.

 

O frenesi foi o lançamento de dois filmes, Longboard 2000, referência ao ano de lançamento e praticamente um ano depois, o Hang With Us. Imagens dos maiores longboarders do Brasil e do mundo muito bem apresentadas por quem realmente é do ramo. Vendeu cerca de três mil cópias, um número expressivo na época, que até as grandes marcas tinham dificuldade para atingir. Esses dois filmes são procurados até hoje por quem pega onda de longboard.

 

A revista Longboard Brasil durou menos que o site, mas foi tão importante quanto. O Twunay fez o possível para segurá-la, mas sucumbiu diante das dificuldades do mercado. Talvez ele seja legal demais para lidar com tanto tubarão de lagoa e preferiu se entocar em Camburi para manter puro seu vínculo com o longboard.

 

Hoje, analisando bem, não dá pra dizer que a revista não deu certo. A intenção dele em colaborar com o crescimento do longboard nacional ultrapassou a morte da Longboard Brasil. Sobreviveram seus ideais e a revista durou o necessário para dar o empurrão que precisávamos.

 

Na década de 90 havia uma molecada rumando forte das pranchinhas para o longboard. Uma geração preciosa se formava ainda que sem muita noção do que estavam fazendo. Era mais pelo tesão de pegar onda de longboard do que qualquer pretensão em viver das competições.

 

Augusto Saldanha, Jeremias Mica, Alex Leite, Marcelinho do Tombo, Márcio Natureza, Roni Hipólito, Adriano Teco, Eduardo Bagé, Phil Rajzman, Marcelo Freitas, Thiago Mariano, Robledo Oliveira, Toninho Costa, Aladin, Abolição, Giuseppe Júnior, Mulinha, Ronaldo Aranha, entre outros. Fomos os primeiros moleques do longboard pós-moderno, chutamos o paradigma de que os pranchões eram coisa de velho.

 

Por ter vivido diretamente tudo aquilo, afirmo fácil que o Hanging Together e a Longboard Brasil foram responsáveis diretos pela formação dessa geração, talvez a mais importante para a consolidação da modalidade no Brasil e responsável por dar a liga entre o ressurgimento e o quadro atual. Se não fosse a entrega dessa geração, o longboard não teria a tradição que tem hoje, pois resgatamos ícones, formamos ídolos, um circuito sólido, títulos mundiais, clima familiar e ganhando cada vez mais espaço nos meios de comunicação, como na revista Fluir, por exemplo.

 

O mais legal é que o site e a Longboard Brasil davam a direção sobre qual devia ser o sentimento quando se fala em longboard. A camaradagem sempre prevaleceu sem nunca ser confundida com preferências e panelinhas. Faziam uma cobertura democrática e ajudaram a formar a família longboard.

 

O Hanging Together, do Sobral, e a revista, do Twunay, facilitaram o entendimento e a consolidação da modalidade no Brasil. Deixaram o caminho livre e norteado.

 

Posteriormente, caras que comandam (ou comandaram) a edição dos principais veículos especializados em surf do Brasil vêm tendo grande importância no registro da breve história do longboard brasileiro. Edinho Leite, Dudu Stryjer, Alceu Toledo Júnior, Steven Allain, Kiko Carvalho e Ricardo Macario tiveram feeling ao incluir o longboard nas suas linhas editoriais, pois acompanharam todo barulho que estávamos fazendo e sabem que agora é época de colheita.

 

A safra é farta e promissora. O segredo foi semear com paixão, regando sempre com muita água salgada. Afinal, a história do surf começa a ser feita dentro da água. Quem a registra recebe a dádiva de poder surfar também fora dela, pelo menos era essa a impressão que o Rafael e o Twunay passavam. Talvez por isso o Hanging Together e a Longboard Brasil tenham sido tão influentes. Sorte nossa.