Leitura de Onda

São Conrado imortal

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Mesmo com todos os problemas ambientais, São Conrado é incrível, e sempre sobrevive. Foto: Eduardo Menezes
 

Pintou uma brecha no fim de tarde de domingo para fazer um surfe rápido. O Canto Esquerdo de São Conrado é quase sempre a melhor relação custo-benefício em qualidade e distância para quem mora na Zona Sul do Rio.

 

Mas, gato escaldado, com histórico de hepatite e micoses ao longo da vida, recorro a amigos no What’s App.

 

– Canto esquerdo tá com muito esgoto?

– Defina muito.

– Vazamento visível na tubulação da Niemeyer.

– Não. Pode ir. Surfei ontem e hoje lá e não está dos piores. Se o vento diminuir, no fim de tarde vai ficar bom.

– Saindo.

 

Em frente ao pico, de prancha na mão, percebi como nos acostumamos com condições absolutamente degradantes. Meu amigo estava certo, o dia “não estava dos piores”, era uma condição “default” de São Conrado.

 

Ainda no calçadão, o surfista ou banhista é brindado com uma aviltante bruma de esgoto, resultado de uma das mais estúpidas obras de saneamento já realizadas no Rio de Janeiro – o desvio da galeria de cintura para o costão da Niemeyer, em frente ao pico. Todos os indicadores pioraram depois da obra.

 

Dentro d’água, o que era apenas um odor, da névoa formada pelo contato do esgoto com a água gelada, vira sabor. Um amargo sabor de esgoto, sobretudo na arrebentação, onde o liquidificador do caldo é sempre acompanhado de uma boa dose de coliformes. É que a ondulação de leste carrega o volume de poluição para o lado, em paralelo à areia, exatamente na área dos surfistas.

 

Mesmo com todos os problemas, São Conrado é incrível, e sempre sobrevive.

 

Outro dia, numa lista de amigos, rolou uma discussão sobre as medidas de pressão ao poder público para modificar o cenário. Alguém sugeriu boicote ao pico, ou seja, esvaziar completamente a praia, transformá-la num passivo.

 

Mas não. Isso é confortável para administradores públicos. No Rio, já temos dezenas de ativos naturais abandonados e, para alegria dos governos, esquecidos. Quer um exemplo? A Praia de Botafogo. Alguém lembra dela?

 

São Conrado resiste e, lentamente, forja um interessantíssimo caldo cultural, que mistura os locais da Rocinha, dos prédios de classe média e classe alta do bairro e surfistas frequentes. A influência das novas gerações traz uma nota bacana de contestação e criatividade.

 

Domingo, no canto esquerdo, eu surfei ouvindo hip-hop. Um dos quiosques da praia, do Riquinho, fazia uma festinha maneira, para a galera do surfe, com um som instigante e audível do pico. Comenta-se, dentro e fora d’água, que, como parte das obras de revitalização da orla, vão construir ali um bowl de skate.

 

Assim, silenciosamente, ganha força um novo polo na cultura de praia do Rio – uma mistura interessantíssima e viva, ainda mais intensa que a produzida no Arpoador, por exemplo, onde surfistas do Cantagalo e do Pavão dividem o line-up com os de Ipanema.

 

Um caldo cultural que, por incrível que pareça, parece ganhar ainda mais força ao ser fermentado por esgoto. É que os surfistas, ali, são, antes de tudo, resistentes. Resistem ao esquecimento do Estado, resistem às doenças de veiculação hídrica, resistem aos caldos e aos dropes mais verticais do Rio.

 

No domingo, vi um Canto Esquerdo de São Conrado vivo, pulsante, com surfistas entocados em caroços quadrados, bodyboarders se tacando de qualquer jeito em ondas negativas e muita, muita gente na água.

 

Do outro lado da história, o Estado divulga com alarde a praia como parte do Programa Sena Limpa. As obras, que deveriam ter sido entregues em dezembro de 2013, incluiriam a instalação de redes auxiliares no Vidigal, a reforma da estação elevatória da Rocinha e a troca da tubulação podre que liga as elevatórias de São Conrado e Leblon, pela Niemeyer.

 

O atraso e as péssimas condições ambientais fizeram com que, acertadamente, os organizadores do WCT no Rio decidissem, semana passada, não mais incluir o Canto Esquerdo como um dos picos do evento. Mas as obras da Sena Limpa, se finalizadas adequadamente, podem causar uma transformação na cena jovem da praia, influenciando a cultura de praia do Rio de Janeiro.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".