Bom de Bico

Em busca de Nuuhiwa

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Depois de busca incessante por lendário David Nuuhiwa, Jaime Viúdes tem pretensões frustradas na Califórnia (EUA). Foto: Paulo Camargo.

Jaime diverte-se durante gravações de seu filme sobre surf de longboard, pranchas antigas, tradição e personalidades. Foto: Paulo Camargo.

No começo de maio, me mandei para a Califórnia, onde iniciaria as gravações de um filme. O conteúdo envolve muito surf de longboard e pranchas antigas, tradição e personalidades.

 

Fiz alguns contatos antes de sair do Brasil, tive algumas respostas positivas, como a de Taylor Jensen, atual campeão mundial de longboard, mas alguns não responderam meus emails.

Uma das figuras que priorizava encontrar era David Nuuhiwa, um dos mais técnicos surfistas de seu tempo.

 

Não tenho um ídolo específico no surf, admiro vários, mas David sempre me chamou mais a atenção do que qualquer outro.

 

De origem havaiana, mudou-se para a Califórnia em 1961 e atualmente vive na badalada Huntington Beach. Dominou a arte do noseriding como poucos e foi o maior favorito para conquistar o título mundial de 1966, o que acabou não acontecendo, para surpresa da comunidade surfística da época.

 

Ainda teve outras chances, uma em 71, já na transição do longboard para as pranchinhas, e a outra em 72, quando teve sua prancha roubada, que foi encontrada posteriormente pendurada e toda dilacerada no Ocean Beach Pier, com os dizeres de “Good luck David”.

 

Em ambas as ocasiões, não conseguiu o título. Depois disso saiu de cena e voltou depois do ressurgimento dos pranchões no anos 80. “Uncle” David, como é chamado por lá, foi um desses que não responderam minhas mensagens, mas eu estava disposto a encontrá-lo.

Viajei na companhia do fotógrafo e cinegrafista Paulo Camargo, e saímos registrando tudo o que víamos pela frente. Enquanto esperávamos melhores ondas para filmar com Taylor, gravamos muito surf de monoquilha, principalmente em Old Mans, San Onofre.

 

Como o nome diz, o local é frequentado por senhores de idade bem avançada, que chegam à praia com carrões antigos e longboards clássicos, dando a impressão de uma volta ao passado. Eu me diverti bastante com minha single fin, só tirando a prancha progressiva da capa uns cinco dias depois de ter chegado.

Nesses primeiros dias, fizemos algumas investidas em Huntington para ver se encontrávamos Nuuhiwa por lá. Investiguei os locais que ele costumava frequentar, e soube que toda tarde passava numa surf shop nos fundos da Main Street e que batia cartão no Aloha Grill, um bar que fica na mesma rua, mais próximo ao tradicional píer de Huntington.

 

Mas, nada de o cara aparecer. Aproveitei para gravar cenas de rua e locais como o próprio píer, o museu do surf, a Calçada da Fama e algumas lojas, como a de Chuck Dent. Quando as ondas subiram, encontrei Taylor em San Onofre e combinamos uma session em Churches, que fica ao lado de Trestles.

 

Gabriel Nascimento, que está morando em Los Angeles, chegou cedo ao nosso hotel e fomos ao encontro do campeão. Pegamos boas ondas e, com mais alguns depoimentos, já tinha garantido um material satisfatório.

 

Mas sabia que ainda tinha muita coisa para acontecer, pois estava esperando o shaper Neco Carbone, que vinha do Hawaii e ia passar alguns dias com a gente.

 

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Neco Carbone visita museu do surf na Califa. Foto: Arquivo pessoal Jaime Viúdes.

Paulo Camargo e Jaime passeiam pelo píer de Huntington Beach. Foto: Paulo Camargo.

Saímos mais cedo de Churches, em San Clemente, para buscar Neco em Los Angeles, que fica pouco mais de uma hora de lá. Chegamos ao aeroporto quase uma hora atrasados por causa do trânsito e nada de Neco.

 

Não conseguíamos fazer contato e decidi abrir a internet para ver se tinha alguma mensagem sobre seu paradeiro. Ele tinha perdido o voo e só chegaria oito horas mais tarde. Fomos agilizar algumas coisas e voltamos para fazer o resgate.

Com Neco, gravamos bastante material sobre pranchas. Visitamos o shaper Bill Stewart, que foi muito atencioso. Contou sua história, falou sobre suas pranchas e mostrou alguns de seus protótipos preferidos. Tudo com muito senso de humor.

 

Demos várias caídas com Neco em San Onofre e investimos em Churches e Swamis, que rendeu uma boa sessão. Também passamos por San Diego, Cardiff, Oceanside, etc. Fomos à Hansen Surfboards, entre outras tradicionais fábricas.

 

A presença de Neco foi preciosa para o projeto. Foi legal ver um importante shaper daqui trocando informações com outros de um lugar tão importante para a cultura do surf, onde a variedade de pranchas impressiona e os longboards nitidamente ocupam uma enorme fatia de vendas.

 

Fatalmente, aproveitei a presença de Neco para voltar a Huntington. Paulo já não aguentava voltar lá, mas, disfarçando minha obsessão de trombar o Nuuhiwa, insisti que Neco não podia perder a oportunidade de conhecer a cidade.

Depois que Neco foi embora, gravamos mais algumas caídas com Taylor Jensen e, no último domingo da trip, decidimos fazer uma busca por Joel Tudor em Cardiff, já que ele também não havia respondido meus emails.

 

Só que na noite anterior, Gabriel ligou de LA, botando pilha para encontrá-lo em Old Mans novamente. Já tínhamos muito material de lá e estava meio desanimado, porém quando cheguei ao pico vi que não poderia estar num lugar melhor.

 

Avistei logo Guy Takayama entrando no mar. Enquanto isso, Lindsay Steinriede Engle, atual campeã mundial, se destacava no crowd, mostrando muita técnica e um estilo lindo.

 

Depois que ela saiu do mar, outras garotas entraram e também chamaram muito nossa atenção. Pegamos bons momentos da Hallie Rohr e da Makala Smith, que se mostraram empolgadas quando fui pegar permissão de usar suas imagens no filme.

Pouco tempo depois, encontrei Alex Knost e Jared Mel se preparando para entrar no mar. Conheci Alex em 2003, no mundial do México, e ele não pensou duas vezes em aceitar gravar com a gente. Talvez o melhor depoimento desse dia tenha sido de Guy Takayama, que também já conhecia de duas outras oportunidades na Costa Rica.

 

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Alex Knost e amigos participam de gravações em San Onofre. Foto: Paulo Camargo.

Além de ser sobrinho de Donald Takayama, um dos mais cobiçados shapers de longboard do mundo, ele fazia uma série de campeonatos mundiais de noseriding. Guy também é um conceituado shaper e desenvolveu alguns modelos de quilhas muito requisitadas pelos longboarders, como a Mantra, por exemplo.

 

Ele ficou de arrumar um encontro com Donald, que estava prestes a voltar do Hawaii. Quando telefonei para Guy no dia seguinte, soube que seu tio resolvera ficar mais uns dias nas ilhas. Como já estava no final da trip, o encontro não aconteceu.

Eu já estava bem feliz com o material que tínhamos conseguido, mas sempre comentava com Paulo Camargo que se encontrássemos o David Nuuhiwa seria a cereja do bolo.

Gabriel Nascimento e seu pai Beto marcam presença na trip. Foto: Arquivo pessoal Jaime Viúdes.

 

Falei no velho a viagem toda, até que no penúltimo dia, indo para LA de mala e cuia, botei pilha em Paulinho para uma última passada em Huntington Beach. Vasculhei alguns lugares e consegui seu telefone depois de insistir com o dono do bar Aloha Grill.

 

Liguei e ele disse que se lembrava de mim, de quando competi no mundial de San Onofre em 2008. Mostrou-se disposto a gravar com a gente e combinamos de nos encontrar em frente ao Aloha Grill em 30 minutos. Fiquei pilhado, não via a hora de fechar logo essa filmagem.

 

Esperamos por quase duas horas. Naquela altura, minha ansiedade estava no limite, quando o dono do bar aparece na porta, me chama dizendo que o cara já estava lá. Ele entrou pelos fundos, pois eu estava na porta e seria impossível não reconhecê-lo com sua altura e a vasta cabeleira branca que contrasta com a pele escura.

Entrei no bar apressando Paulinho. Apesar de ter combinado com ele em frente ao bar, do lado de fora, não queria que ele esperasse nem mais um minuto por nós. Ele nos levou para uma mesa nos fundos, onde o barulho era mais ameno. Perguntou novamente sobre o projeto.

 

Passei as informações e aí veio o banho de água fria. Ele pediu uma bolada para gravarmos com ele. Expliquei que estávamos iniciando com investimento próprio, que ainda não seria possível arcar com aquela quantia, mesmo porque já estávamos no final da trip e tínhamos estourado o orçamento.

 

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San Onofre é cenário de tradição do surf californiano. Foto: Paulo Camargo.

Jaime Viúdes também visita pico de Old Mans. Foto: Paulo Camargo.

O dono do bar fazia às vezes de seu empresário, mas estava claro que não era.

 

Ficou uma forte impressão de que aquela não era a real vontade de David, mesmo porque ele foi super receptivo no telefone e eu já havia gravado com ele em 2008, mas não usei as imagens porque o áudio não tinha ficado bom.

 

Disse a Nuuhiwa que entendia a situação, afinal ele era uma personalidade do esporte, mas que não teríamos mesmo condições, que o filme estava sendo feito na raça, no feeling, no amor pelo surf. Não houve argumentos que os convencesse e nos despedimos.

Saí de lá um pouco indignado pelo dono do bar ter se atravessado, por ter chegado tão perto e saído de mãos vazias. Acredito que se tivesse pegado David fora de lá, teria gravado sem problemas.

 

Vai ver que fiquei decepcionado por estar fazendo tudo aquilo por paixão, com recursos próprios, grana que veio do surf, das premiações que ganhei nos campeonatos do começo do ano.

 

Por outro lado, vi que talvez aquilo fosse o certo mesmo, que por ele ser uma personalidade do esporte deveria ser valorizado, assim como são os atletas de futebol, tênis, etc.

 

Apesar de estar iniciando nesse ramo, procurei fazer tudo com muita seriedade, tomando cuidados necessários, mas me senti extremamente amador com essa situação.

 

Depois concluí que isso era a mais pura verdade, de acordo com as outras definições da palavra amador que constam nos dicionários: o que ama; o que cultiva qualquer arte ou esporte, por prazer e não por profissão; aquele que trabalha sem remuneração; apreciador, entusiasta.

Antes de ir ao aeroporto, passamos para pegar umas imagens dos doidos de Venice Beach. Ainda fomos até a emblemática Malibu, pico tradicional do longboard mundial, onde a lenda de Miki Dora resiste fortemente e alguns malucos juram ter visto seu espírito por lá.

 

De tão atormentado com a situação do Nuuhiwa e pelo rolé em Venice ter sido surreal, cuidei para não ficar na esperança de encontrar Dora vagando pelas areias de Malibu.