Leitura de Onda

Do desejo ao mar

0

 

Tulio Brandão manobra em Playa Hermosa, Jacó, Costa Rica. Foto: Shifi Attinger.

Dia desses pensei em passar uns dias em Mancora, quase 20 anos depois de minha primeira visita ao balneário peruano. Os amigos que acabaram de voltar elogiaram a estrutura, falaram que a cidade nem de perto parece a pobre vila em que estive por uma semana em 1994.

 

 

Mas fizeram uma ressalva: a viagem, saindo do Rio, continua sendo cansativa. O cabra perde 24 horas de viagem para ir, com o perdão do exagero, logo ali. E o mesmo tempo insano para voltar. São as escalas que assombram os mortais com pouco tempo de lazer. Quatro horas no aeroporto de Lima parecem uma eternidade para o surfista sem tempo, sedento por ondas.

 

Mas não tem jeito. O sujeito tem que passar liso, sem arranhões, pelo abismo existente entre o desejo e o mar. Abaixo, segue um trecho retirado do diário de uma viagem que eu fiz para outro destino que é quase um quintal, a Costa Rica.

 

Poderia ter falado da viagem de três dias até Asu, em Sumatra, mas escolhi o relato de um destino próximo de casa para mostrar que, mesmo quando o trecho é curto, não faltam histórias. 

 

Muitas vezes, não passam de situações ordinárias, cotidianas, mas que ganham uma luz especial por antecederem o momento mágico do primeiro dia de uma surftrip sonhada.

 

Diário de viagem original: Costa Rica, 2004

 

“Desacostumei ao mundo flexível do Marques. Voo internacional marcado para 9h no Tom Jobim, 8h30 e nem sinal do primo, portador da minha passagem. Beleza, nada muito diferente de tantas outras surftrips. A primeira onda de qualquer viagem com prancha é a informalidade. Chegar sem saber onde vai dormir, pegar onda num lugar que o maluco na rua indicou, comer na hora que não estiver na água. Costuma dar certo.

 

Até São Paulo, foi tudo bem. Na garoa, depois de muita espera, chegara a hora de encarar a Copa Airlines. Nada contra a companhia, mas a poltrona 25c do 737 é indecente. 

 

Saca aquela última fileira, colada no banheiro, onde nego apóia a mão antes de tirar do estômago o pão com presunto servido no lanche? Saca aquela poltrona que, avião no ar, não reclina um milímetro para trás e quase encosta na da frente, cujo passageiro, claro, a reclina inteirinha? Era eu que estava lá, todo torto e molhado de suor – para piorar, o ar condicionado do fim do avião não funcionava. 

 

Fiquei meio fedido, mas suei o prejuízo deles. Pedi logo um copão cheio de Something Special, na conta da companhia. Descemos no aeroporto da Cidade do Panamá e deu tempo de ver a escala ali tem uma “função Miami”: a corrida pelos eletrônicos baratos é louca.

 

No desembarque em San Jose, muitas horas depois do embarque no Rio, meu primo Marques abusa do “amigo, você non está entendiendo”, mas ganha o cara da locadora de veículos. Pegaríamos, no dia seguinte, o Terios, um 4×4 da Daihatsu que cairia bem no Brasil. 

 

São 22h, e duas múmias seguem o caminho dos hotéis baratos perto do aeroporto. Todos estão lotados. O Centro da cidade fica a 20 km dos aviões, para o lado contrário ao que iríamos no dia seguinte.

 

Caímos na Avenida Automóvel Club da Costa Rica, no único hotel disponível nas redondezas. Famintos, saímos pela rua para comer alguma coisa. Noite de sábado, suburbão costariquenho, rua meio sinistra, chegamos a uma casa escura com gente na porta. “Puesso dar una olhadita?” Um minuto depois, ele volta com cara de quem viu assombração. 

 

“Tinha comida? Rango?”, perguntei. “Não”. Nem perguntei o que ele viu. Seguimos a caminhada faminta. De um lado, um cemitério sombrio, de outro, casas abandonadas. Na esquina, um bando de malandros vestidos de preto na esquina. Começam a correr na nossa direção. Correria louca. Riso nervoso, depois de escapar.

 

Corremos até um hotel sem estrela e com cozinha. O melhor do mundo, a esta altura. Encaramos um sanduíche de pollo com papas fritas básico.

 

Ainda de madrugada, estávamos de pé para retirar o carro da locadora. A tarefa, comum em alguns cantos, é um exercício de paciência na Costa Rica. 

 

Você chega com prancha e os caras logo acham que o carro vai atravessar rio, ponte de madeira e que o motorista é um Crocodillo Dundee disfarçado ou um moleque irresponsável louco para destruir o 4×4 nas estradas de terra que levam às ondas. 

 

Se o choro vale desconto, a atenção antes de retirar o carro é um remédio que evita dor de cabeça na entrega. É que os carros alugados na Costa Rica passam realmente por pontes de madeira, rios e são alugados por Dundees para alcançar as praias distantes e matas fechadas em parques nacionais.

 

Portanto, chegam com batidas e arranhões. Se o dano não for identificado antes da retirada, quem paga por isso depois é você.

 

Chega de perrengue, é hora da pura vida na Costa Rica. Numa estrada razovelmente bem sinalizada, rasgamos o asfalto com o Teriazinho até nosso primeiro destino: Jaco (pronuncia-se Racó), balneário mais próximo da capital San Jose, duas horas a leste de carro. Era a hora do desejo encontrar o mar.” 

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.

 

 


 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".