Leitura de Onda

Coluna 100: Mineiro campeão

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Adriano de Souza, um legítimo campeão no coração de toda a torcida brasileira. Foto: © ASP / Kirstin.

A centésima coluna Leitura de Onda, à la Chico Science, deixa que fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer. O texto comemorativo, portanto, celebra a inesquecível vitória pessoal de Adriano de Souza na primeira etapa do World Tour, em Snapper Rocks. Nada mais legítimo que o grito do torcedor no pódio: “é campeão!”

 

 

O Adriano visto na Gold Coast em 2012 é uma máquina difícil de ser derrotada. Da última temporada para cá, o surfista ganhou traços definitivos de maturidade, ampliou com inteligência seu pacote de manobras vencedoras, evoluiu a forma física e reforçou ainda mais a sua já conhecida gana, como se a exibida em outros anos não fosse suficiente.

 

Mais introspectivo e sério, construiu o caminho até a final vencendo todas as armadilhas impostas no território do canguru: as perguntas capciosas nas entrevistas obrigatórias da ASP, a eterna desconfiança de alguns jornalistas e uma pá de baterias contra bandeiras australianas. Somou quatro vitórias sobre as apostas locais Owen Wright e Josh Kerr: venceu os dois no round 4, Owen de novo nas quartas e Kerr nas semifinais.

 

O desejo de vitória estava impresso em cada manobra aérea arriscada, em cada declaração certeira nas entrevistas obrigatórias, no olhar fulminante. Suas convicções armadas lhe davam força e amedrontavam adversários. Deve ter australiano bem nascido se perguntando até agora de onde o cara tira essa gana.

 

Mineiro não está no WT a lazer, de bobeira. Tem orgulho de ser trabalhador. Diz isso a quem quiser ouvir, goste ou não. É um cara original, que não pretende ser igual aos outros. Deixou o discurso “stoked” de lado. E tem mais: bate no peito para dizer que é brasileiro de verdade. 

 

Na final, esse cara encontrou o sempre veloz e fluido Taj Burrow. Era mais um australiano, talvez o melhor do evento, desta vez no fim do caminho. Como já fizera com os outros locais, Adriano jogou duro na disputa de remada para ganhar a preferência da primeira onda. Incansável, no meio da final buscou mais um 6,43. 

 

A esta altura, a assustadora massa de brasileiros em Snapper já dominava a beira d’água, empurrando Adriano e intimidando Taj. Parecia a invasão do time do próprio Adriano, o Corinthians, em pleno Maracanã, num jogo contra o Fluminense, pelo Brasileiro de 1976.

 

Taj, em excelente forma, surfando sem suas tradicionais pranchas fire wire, esteve perdido durante boa parte da bateria, até encontrar uma onda despretensiosa no início, que reformou de modo magnífico no inside.

 

O australiano abriu seu pacote de rasgadas, batidas e reverses sem perder a velocidade. Uma onda muito bem surfada, com estilo, técnica e velocidade, sem o risco da manobra aérea. Os juízes lhe deram um surpreendente 9,43, embora a onda, pelos critérios aparentes daquele evento, parecesse mais afeita a uma nota 8 com décimos altos. Pouco depois, fez um 6,43 para sacramentar a liderança.

 

A dois minutos do fim, o brasileiro estava sem prioridade, num mar revoltante para os padrões de Snapper, precisando de um 7,87 para virar o resultado. Livrou-se da marcação e encontrou uma onda branca, que montou apenas uma parede.

 

Era o suficiente: Adriano voou muito alto, com as mãos na borda, como se soubesse que aquele era o seu último tiro. Acertou o alvo, mas os juízes optaram por lhe dar uma nota dois décimos inferior à necessária ao título.

 

Naquelas condições de julgamento e de mar, com dois atletas de estilos tão distintos mas com técnicas em patamares tão semelhantes, beira o impossível dar ou tirar o título de alguém, com justiça, por dois décimos. Portanto, para mim, Adriano também foi campeão em Snapper.

 

Discuti incessantemente com amigos as quatro ondas pontuadas. A onda que valeu a Taj 9,43 foi sobrevalorizada. O surfe do aussie é rápido e bonito, só que não tem índice de novidade. É conservador. Se o evento não fosse na Austrália, provavelmente Taj não teria vencido. 

 

Mas, em vez de polemizar, prefiro honrar a escolha de Adriano, um campeão também fora d’água.  A imagem dele deitado extenuado, atrás do jet-ski, ao fim da bateria, é um retrato comovente de seu sofrimento com a derrota.

 

Mas, minutos depois, na hora da entrevista final obrigatória, ele confirmou o seu espírito vencedor: teve a grandeza de declarar que Taj tinha conquistado o título do evento merecidamente. 

 

Adriano já sabe há muito tempo que vai ser beneficiado e prejudicado outras vezes. Tem que ganhar levando em conta essa variável, o índice de erro de julgamento. E está fazendo isso. Com a vitória particular em Snapper, ele se consolida como um dos fortes candidatos ao título de 2012. Em outras temporadas, muitos já duvidaram disso. Acho que, agora, ninguém duvida.

 

Em tempo: obrigado, leitores, por interagirem com a coluna durante as 100 semanas ininterruptas em que foi publicada. Foi um enorme prazer construir mensagens sobre o esporte que move a minha vida com a ajuda de vocês.

 

Agradeço também ao site Waves, em especial ao diretor, Alceu Toledo Júnior, por acreditar nessa rica parceria. Um abraço.

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.  

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".