Lembranças do Hawaii

Canto das flores

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Sunset Beach, North Shore, Oahu, Hawaii. Foto: Bruno Lemos / Lemosimages.com.

Em um dia destes corriqueiros fui de bicicleta até São Vicente (SP) pra pegar umas revelações, e como sempre, na volta pra Santos (SP)peguei a ciclovia.

 

Esta que amedronta até os mais corajosos pelo acúmulo de ciclistas gladiadores, que apostam quem consegue pedalar mais rápido e ao mesmo tempo tentar derrubar os oponentes, ou seja, você. Coisas de Santos.

 

Passei pelo Posto 1 e fui pedalando em direção ao Quebra-Mar. Ao passar bem na frente da escolinha do Picuruta que estava fechada, um aroma de flores e grama tomou conta do meu olfato.

 

Um cheiro diferente do normal, que se transformou em lembranças e memórias, rapidamente se emoldurando na mais pura saudade e nostalgia chamada Hawaii.

 

Sempre fui fissurado pelo Hawaii. Desde pequeno me lembro de assistir programas de TV que retratavam as belezas e maravilhas das ilhas. Isto só aumentou quando comecei a surfar aos dez anos de idade.

 

Lembro de encostar o braço nos muros altos e fazer toda a envergadura, como se estivesse passando bem rápido pelo turbilhão de água no inside de Sunset Beach. Ou de ficar babando ao ver o programa Realce, que mostrava um clip com os melhores momentos do inverno havaiano de mil novecentos e oitenta e alguma coisa. Lembro da música que tocava.                                                                                                     

 

Depois de alguns bons anos tive a honra de pisar em Oahu pela primeira vez. Já descrita várias vezes, por vários jornalistas do surf, a chegada no Hawaii, realmente é algo difícil de explicar.

 

Primeiro você voa por umas seis horas se estiver vindo de Los Angeles, ou umas dez horas se estiver vindo da costa leste. Ao chegar perto das ilhas a imaginação começa a pairar em sua mente. O azul da água é impressionante. Vários tons que não cabem sequer em uma aquarela.

 

De repente o avião faz um contorno e passa pelos perímetros de Diamond Head, onde você claramente vê a cratera e as casas em volta. Começa a descida e o avião finalmente pousa. Um enorme momento de silêncio passa pela sua cabeça, com lembranças de todas as dificuldades e desafios passados para chegar até ali.

 

Após passar pela burocracia, você passa por uma passarela até chegar o local onde ficam as malas. Aí começa o surreal. Uma forte brisa morna toma conta do seu rosto, passa pelos braços e pernas. Um imenso arrepio toma conta de toda sua pele. Cheiro de flores, grama e sonho tomam proporções maiores do que tudo e todos na sua vida.

 

Dali em diante, tudo acontece um pouco mais rápido, pois a fissura de se chegar ao destino e ver o mar do North Shore é bem maior do que as novidades à sua volta.

 

Minha primeira noite lá, por incrível que pareça, eu passei em um albergue de Ala Moana, pois não consegui alugar nenhum carro, já que era menor de 21 anos.

 

Cheguei ali de táxi, que um enorme samoano dirigia cantando e falando comigo. Não que eu entendesse muitas coisas, mas nos esforçávamos para nos fazermos nítidos.

 

Coloquei minhas malas no quarto e desci até o escritoriozinho, onde um americano com o cabelo cheio de dreads tocava violão, enquanto a recepcionista varria o chão legitimamente dançando com uma vassoura. A música era Jamming do rei, e o cheiro de Havaii tomava meu coração pra sempre.

 

Dormi e finalmente consegui alugar um carro que me levou até o North Shore. Diferente de todos os brasileiros que vão pra lá, me perdi e acabei indo pela costa leste, ao invés de ir pelo meio da ilha. A paisagem das praias é estonteante e a euforia de se chegar ao North Shore é enorme.

 

Depois de dirigir por duas horas, cheguei em uma praia cheia de ônibus e turistas japoneses que se acotovelavam para tirar um milhão de fotos por segundo, com suas super câmeras, que para dizer a verdade, poderiam fazer tudo sozinhas, de tanta tecnologia.

 

Parei o carro e desci. Caminhei e quando me dei conta era Sunset Beach. Sabe aqueles momentos em que sua vida pára. O vento pára. As vozes se calam. Esse foi um dos momentos. A história se segue e as idas e vindas para o reino havaiano se sucederam por várias vezes.

 

O cheiro de grama e flores que tomaram conta de meu corpo na ciclovia de Santos, logicamente não era o mesmo que se sente no Hawaii. O lugar não é e nem nunca será o Hawaii. As pessoas não se portam e nem se comportam como lá.

 

Nestes pequenos e rápidos momentos em que você passa rapidamente pelas estradas da vida, e que provavelmente não voltarão, você percebe que poucas coisas se levam da vida, a não ser amigos, saudades e cheiros.

 

Cheiros que trazem tantas memórias quanto uma foto. Cheiros que nos transportam para lugares longínquos, que momentaneamente nos transformam. A saudade de lugares, cheiros, pessoas, coisas, gostos e mar, tudo vem imediatamente.

 

Todas as coisas que passam pela nossa mente diariamente são vãs perto dessas memórias. Coisas que contamos com graça, virtude e a veracidade de quem tem dúvida se realmente aconteceram.

 

Luzes de cidades distantes e sorrisos de pessoas amáveis nos tornam melhores em tudo. Melhores que as enormes filas nos bancos, em que os caixas te tratam como qualquer um. Podemos até ser qualquer um, mas os sentimentos, as lembranças do mar, as buscas e a sensação da eternidade de alguns momentos, nos torna um grupo especial e raro.

 

Surfistas.

Jair Bortoleto
Jair Bortoleto é um fotógrafo documental que encontrou um lugar recorrente no panteão dos criadores de imagens de surf / skate internacionais. Por meio de seu trabalho como fotógrafo, como editor executivo do The Surfer's Journal Brasil até diretor e inspirador do Santos Surfart, entre uma dúzia de outras mostras de arte coletivas e revistas em todo o mundo, a paixão de Jair o colocou na vanguarda da cultura brasileira do surfe. Jair é autor de dois livros, o Alma Santista e A PRIMEIRA PALAVRA. Na fotografia, sua preocupação primária é a relação entre as pessoas e o oceano e como esta conexão se expressa na vida diária.