Bom de Bico

Cadillac das ondas

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Recentemente encomendei algumas pranchas e me internei alguns dias na fábrica. Fazia tempo que não gastava um tempo neste ambiente, que antigamente era o local que os surfistas mais gostavam de ficar quando não estavam na praia.

A produção era mais tranquila e permitia também ser um ponto de encontro da galera. Hoje, pela larga produção, já não passamos mais tanto tempo, pois quem trabalha com isso está sempre muito ocupado.

Por conta do documentário que estou produzindo, disse ao Neco Carbone, que é meu shaper há mais de dez anos, que queria filmar todo o processo de uma das pranchas. Por ser muito requisitado, ele dificilmente abre mão de utilizar a máquina de shape para poder dar conta da produção. O Neco já tinha embarcado forte no projeto do filme, quando me encontrou na Califórnia para as primeiras gravações.

Mencionei que umas das pranchas seria um modelo clássico, e por isso ele resolveu fazê-lo à mão, pois um dos temas do filme é exatamente resgatar a tradição e o lirismo do surf. Isso aflorou também uma nostalgia nele, que é um longboarder tarimbado e uma das principais referências do surf clássico no Brasil.

Fiquei mais surpreso ainda quando ele tirou da manga um outline original do David Nuuhiwa, que havia ganhado de um amigo. Ele começou a riscar a espuma de poliuretano, e as linhas desenhadas deram forma a um verdadeiro cadillac das ondas, que visualizei pronto imediatamente e podia até senti-la nos meus pés. Como num passe de mágica, parecia que havíamos sido transportados ao passado, em plena época dos shapes computadorizados. Um pequeno problema na plaina contribuiu um pouco mais para essa sensação, quando o Neco abriu a ferramenta e concertou o problema mecânico. Por várias vezes me peguei mergulhado fundo nos movimentos das suas mãos.

Paulo Camargo, que estava filmando tudo, dizia que ele estava fazendo de um jeito tão natural e harmônico que parecia estar em transe. Era quase palpável o sentimento que estava sendo colocado enquanto dava forma no bloco. O resultado foi uma linda single fin 9’3”, com as reais características que determinam uma prancha clássica californiana. Eu queria ela maior, mas para conseguir a curvatura ideal tivemos que reduzir seu tamanho.

Da sala do Neco, levamos o shape para o laminador, o também conceituado longboarder Roni Hipólito, que sugeriu uma laminação pigmentada. Acompanhei a mistura das cores, até que chegasse aos tons ideais. Quando o Roni enfim posicionou a prancha no cavalete para continuar sua arte, percebi que entrou em sintonia com a gente. Antes de a resina colorida cair no tecido, ele não parava de falar que o shape estava lindo, que a prancha ia ficar alucinante, que isso, que aquilo.

Quando a espátula começou a deslizar suavemente, espalhando as cores pela prancha, ele se calou, e ficou hipnotizado com o trabalho. De alguma forma, o sentimento colocado naquele shape clássico por mim e pelo Neco o contagiou. O brilho nos olhos denunciava qual era a vibração.

Viajei na ideia de que é incrível como uma coisa que virou tão rotineira, principalmente para um shaper e um laminador, ainda pode mexer com nossas emoções. Surfistas são emotivos em relação ao equipamento e longboarders geralmente são mais nostálgicos.

O mercado de pranchas cresceu bastante, acelerando a produção a ponto de ofuscar o romantismo clássico que existia nas fábricas, quando a maioria era situada nos fundos dos quintais das casas dos surfistas. Foi uma experiência que já tinha vivido inúmeras vezes, mas dessa vez senti como se fosse a primeira. Se o barulho ensurdecedor da plaina e o cheiro forte da resina podem ser prejudiciais para o corpo, nesse caso fizeram muito bem para a alma de um surfista.

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