Leitura de Onda

Bellsil

0

 

 

Raoni Monteiro derrota Joel Parkinson em bateria histórica. Foto: © ASP / Robertson.

Na história não escrita da ASP, muito se falou sobre o surfe recortado de nossos atletas. Muito se falou sobre nossa mania de quicar sobre a prancha, e sobre nosso vício de aproveitar ondas até a última gota de espuma. Como se estivéssemos para sempre condenados à coroa do maldito rei de beach break, de mestre em ondas de uma só manobra. E nada mais.

 

Sei, as histórias mudam de curso, e não é de hoje. Agora também somos conhecidos pelo poder da nova geração, pela capacidade inventiva, pela presença certa no futuro.

 

Mas é sempre bom voltar ao clássico, especialmente numa onda como a de Bells Beach, palco do evento mais antigo da história do esporte. As ladeiras da praia de Victoria sempre consagraram as melhores linhas, os arcos mais bem feitos, o carving genuíno.

 

Foi ali que, num simbólico primeiro de abril australiano de 2013, que brasileiros produziram o mais bem composto retrato do surfe brasileiro. Naquela tarde fria, os surfistas de Pindorama inverteram as forças tradicionais e eliminaram, um a um, os melhores surfistas do mundo.

 

Pode ser que tudo se encerre antes do sino, mas nada do que aconteceu ali terá sido em vão.

 

Primeiro, foi William Cardoso. Surfista de força, tamanho G, produtor de leques astronômicos, ele bate na trave do WCT há alguns anos. Não estaria em Bells, mas um dos surfistas titulares não se recuperou a tempo e o catarinense foi escalado.

 

Se há uma onda do tour afeita ao surfe de William, esta onda é Bells.

 

William atropelou de forma impiedosa um surpreendentemente insosso Kelly Slater, que parecia surfar com uma prancha errada e, na entrevista da saída, optou pela velha fórmula do “não estou 100%”, alegando uma lesão nas costas. Feita a ressalva, parabenizou o brasileiro.

 

Na sequência, enquanto o americano ainda buscava novas desculpas, Raoni começava seu show, em plena Austrália, para eliminar Joel Parkinson.

 

Sem medo de errar, foi a melhor bateria da história de Raoni e, talvez, a maior vitória de um brasileiro sobre um australiano. Raoni combinou, sem qualquer remendo, belíssimos arcos, manobras no lip, reverses e uma linha absolutamente impecável para eliminar o titular das mais belas linhas do WCT na casa dele. Os dois ficaram na casa dos 19.

 

Raoni perderia no round 5, em bateria que ele começou mal, mas acabou com um nove. Por muito pouco, não tira também Mick Fanning da disputa. Não importa. Deixou a marca no dia.

Depois foi a vez da máquina Adriano de Souza mostrar a Kolohe Andino como se faz em Bells, com a conhecida combinação de arcos largos, velocidade e potência. Ele venceria, ainda, com autoridade, Raoni e CJ Hobgood no round 4.

 

Um parêntese rápido: foi curioso ver CJ caindo na armadilha da prioridade que ele mesmo criou, ao criticar publicamente a conduta excessivamente competitiva de Adriano nas últimas temporadas.

 

O americano vinha numa onda boa lá de trás, mas Adriano – tal qual fez Kelly com Joel em Kirra – exerceu sua prioridade. Só estranhei ver CJ levantando os braços.

 

E, por fim, o dia brasileiro em Bells teve espaço para a novíssima geração. Filipe Toledo parece estar brincando na onda, enquanto os outros levam tudo a sério. Aéreos rotacionais e sublimes descoladas de rabeta saem com uma naturalidade desconcertante até para o velho Occy, que narra o evento.

 

No round 5, Filipe aplicou uma combinação arrasadora em CJ. Nem se a bateria durasse um dia, o americano viraria.

 

O surfe de Filipe é tão divertido que vale uma preocupação para manter o foco e não perder para o compromisso e o surfe austero dos outros.

 

Hoje, tem mais. Se não me falha a memória – aqui, recorro aos gurus do Data surfe – o Brasil jamais esteve representado com tantos atletas nas quartas-de-final de Bells. Badalar o sino no alto do pódio seria fantástico, mas, de todo modo, a história de Bellsil já está escrita.

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.  

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".