DNA Salgado

Bate-volta

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O bate-volta pode transformar seu dia e deixar até a semana muito mais leve. Foto: Kemel Addas Neto.

 

Você já parou para pensar quanto tempo perdemos por dia em telefonemas, WhatsApp e trânsitos inutilmente?

Já pensou em transformar tudo isto em momentos únicos e que só o surfe nos proporciona?

Vou falar um pouco sobre algo que tem feito as semanas de dezenas de surfistas muito melhores e com uma vibração única, o famoso bate-volta!

Se voltarmos no tempo desde quando comecei a surfar, no início de 1976, nos fins de semana no Guarujá, eu já escutava os surfistas acima de 18 anos comentando que haviam surfado altas ondas algum dia da semana, às vezes um dia pela manhã, outras no fim de tarde. Cada vez que escutava aquilo eu enlouquecia, pensava “Putz, cara, isso é impossível para mim. Como faço para poder surfar durante a semana?”. O surfe naquele momento já havia tomado completamente conta das minhas vontades!

Eu ia à escola todos os dias pela manhã e o máximo que conseguia chegar perto desse sonho era conversar com um ou dois amigos que surfavam naquela época e também não podiam nem de perto sonhar em escapar para pegar onda durante um dia da semana. Ficávamos devorando as revistas de surfe nacionais e importadas, e aquilo só aumentava nossa vontade de estar na água, e sempre vinha a pergunta: “Como deve estar o mar hoje?”.

Bem no começo dos anos 80 começaram a intensificar as sessões de filmes de surfe pelas escolas de Sampa, 3 a 4 vezes por ano íamos assistir a filmes de surfe no Colégio Sacre – Coeur de Marie, Rio Branco e Sion. Começavam as conversas durante as sessões: “Vamos amanhã? Será que vai ter onda?”, e nessa comecei a fazer os primeiros e escondidos bate-voltas.

Sempre sem saber qual seria a condição para o surfe daquele dia, mas sempre imaginando um mar de sonho, igual aos filmes que acabamos de assistir. Algumas vezes arriscava ir de ônibus sozinho, era tenso o tempo todo, pois você ficava pensando que a sua mãe poderia aparecer a qualquer momento no Guarujá (risos).

Tenho na minha memória alguns dias inesquecíveis de bate-volta, mas dois em especial: em uma sexta-feira de março de 1982, com um mar que tinha altíssimas ondas, clean o dia todo, picos quebrando perfeitos por toda a praia, talvez um dos melhores dias que já vi quebrar nas Pitangueiras, acabei apelidando de Queens Point (apelidei assim, pois na noite do dia em que fui surfar o Queen tocou no estádio do Morumbi).

O outro foi um dia épico com o meu grande amigo e mentor, o eterno Paulo Tendas. Era um fim de tarde, senão me engano de outono, o mar estava daquele jeito que vocês podem imaginar e só tinha uma pessoa na água, que era o Tinguinha Lima. Surfamos até não conseguir enxergar absolutamente mais nada. Que fim de tarde aquele!

De lá para cá, o surfe cresceu e os bate-voltas se tornaram constantes para muitos. Nos dias de hoje, existem grupos de mídia sociais só para organizar o bate-volta. A galera fica se falando da hora em que acorda até a hora de dormir, num desespero para ir logo à água.

Descer para a praia em algum dia da semana para surfar nos traz uma sensação de paz, liberdade, ousadia e, claro, as inigualáveis sensações oceânicas!?

Não há nada melhor do que você voltar para a sua cidade e ir direto para o trabalho, e ao chegar lá, olhar para as pessoas com aquela certeza de que você está em uma outra dimensão espiritual!

Por mais que hoje em dia tenhamos todas as informações sobre as condições das ondas e vento antecipadas a hora que quisermos, continuamos como no começo dos anos 80, sempre nos preparando para ir surfar, esperando a surpresa de um mar clássico!

Os bate-voltas geralmente são feitos bem cedo e 90% dos surfistas que têm a ousadia de ir para o surfe durante a semana costumam sair de suas cidades entre 5 e 6 horas da manhã, pois todos precisam voltar cedo para trabalhar.

Dirigindo pela Rodovia dos Imigrantes semanalmente, vejo muitas “barcas” de surfe. Gosto de reparar no semblante das pessoas, em 100% das vezes é sempre a mesma expressão de alegria e paz.

Ao chegar à praia, vejo as mesmas expressões, só que em forma acelerada, pois ninguém quer esperar um segundo para cair na água. É um tal de ver surfista correndo de um lado para o outro, como já sabemos, em uma ansiedade incontrolável!

O único e lamentável ponto negativo é quando vejo alguns grupos de surfistas com seus carros estacionados na orla da praias fazendo uma baita bagunça e sujando as praias sem a mínima consideração. Agindo claramente de forma irresponsável pelo simples fato de não pertencerem ao lugar.

Voltando a falar dessas horas sagradas, o melhor conselho que posso dar é, em vez de gastar tempo e dinheiro fazendo coisas, vai surfar! Como sempre costumo dizer, “Não há nada que um dia de surfe não cure”. A cada investida ao bate-volta é uma renovação no nosso humor e vibrações!

A sensação e surpresa ao chegar na praia para uma sessão de surfe em algum dia da semana é uma combinação muitas vezes que te leva a um estado de espírito que transforma seu dia e até a semana muito mais leve, indescritível!

O incrível é que cada bate-volta é como se fosse o primeiro. Não conheço ninguém que pense diferente! Quem, ao menos uma vez, não fez um bate-volta? Não é errado, não sinta culpa, e se alguém te recriminar, olhe para ele com a certeza de que esse não tem DNA salgado nas veias (risos).

Surfar sempre nos põe em um patamar diferenciado, e pegar onda só de fim de semana para os moradores de cidades que ficam longe do mar é muito pouco, quase um martírio, por isso fazem do bate-volta parte da sua rotina semanal, como jogar tênis ou ir a uma academia.

Ótimos surfistas fazem esses bate-voltas com frequência e transformam essa atitude em parte dos seus estilos de vida.

Cito aqui alguns desses surfistas que me inspiraram a escrever este texto e me inspiram a surfar o máximo que puder: Pedro Regatieri, Rodrigo Bonacorci, Amaury “Piu” Pereira Jr., Rafael Cassemunha, Sandro Zarzur, GM Brothers e muitos outros.

Não perca tempo e saúde. Faça sua playlist, prepare suas pranchas e vá surfar!

Mantenha nossas praias limpas! Aloha!

Kemel Addas Neto
Designer de moda, fotógrafo e artista plástico há mais de 35 anos, fez parte do primeiro staff da revista Fluir e atualmente é o curador de arte da The Board Trader Show. Surfa há mais de 40 anos, possui uma forte conexão com a Califórnia (EUA), com diversas temporadas na bagagem, e é dono do maior acervo de filmes de surfe do Brasil.