Ainda sobre a origem peruana do surf

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#As longas linhas entram perfeitas e maciças como se tivessem sido fabricadas por alguma incrível máquina. Mas não, são obras da mãe natureza e, como tal, indescritivelmente belas. As ondas neste ponto da Terra são, talvez, as mais longas de todas.

O drop é manso. Coisa de cinema. A seção à sua frente se levanta, mas logo depois ela é lisa, levantando-se apenas quando você chega lá. É uma onda fácil de surfar. Fácil se você não perder a linha. A velocidade é crucial, porque se você ficar para trás, é uma vaca só. O pior é enfrentar a corrente incrivelmente forte que corre com as ondas em direção à praia.

Você trabalha a onda e, pouco a pouco, seu cérebro começa a funcionar de uma maneira mais lenta. Você está começando a pensar, pois geralmente é só sentir.

#A onda é tão longa que você fica planejando o seu caminho, vendo a linha se perder muito além. O êxtase é enorme, você está em Chicama, Peru.

Você está surfando em uma onda, por mais tempo do que surfou em dias inteiros em sua praia. E de repente as pernas começam a doer. Cada curva é uma fisgada, e você só se preocupa em não cair. As manobras não são o mais importante. O que conta, agora, é completar a onda. Surfar! Isto é Chicama, Peru, talvez o berço de um esporte milenar.

O Peru, banhado pelas frias correntes do Pacífico, possui incríveis picos de ondas. Punta Hermosa tem ondas suficientemente boas para atrair surfistas de todas as partes. É lá que muita gente se inicia nas grandes ondas que vêm já espumando de alto mar.

Uma, duas, três remadas e o drop. Vem a descida e logo você terá as portas abertas de mais uma seção, convidando-o para um longo cutback. E assim, de manobra em manobra, você vai tomando o mesmo mar que antigos pescadores chimus, há século, transformaram em um playground, voltando de alto mar, cavalgando em cavalos totora.

Quando os primeiros conquistadores espanhóis chegaram à costa peruana, há cerca de 450 anos, ficaram perplexos com o que viram. Segundo escritos da época, os nativos deslizavam sobre o oceano em objetos que pareciam, segundo eles, “graciosos cavalos marinhos”. Parecia uma dança com as ondas ou um jogo com o mar. Aqueles “homens dourados e com peito largo” deveriam ser “deuses do mar”.

O relato espanhol se referia obviamente ao uso de uma embarcação que ficaria conhecida como cavalo totora por causa da posição dos nativos, que iam montados sobre eles. Esse tipo de prancha-embarcação mede cerca de três metros de comprimento e pesa algo em torno de 100 quilos.

É difícil precisar quando exatamente os cavalos totoras começaram a ser usados, já que o junco apodrece, não sobrevivendo para os estudos de datação. Mas estudos arqueológicos em sítios pré-colombianos registraram a presença de um grande número de artefatos de cerâmica e/ou metal utilizados pelos mochicas, entre 200 e 600 d.C., que retratam pescadores “cavalgando” os barcos feitos de totora.

Existe ainda a hipótese de que embarcações semelhantes tenham sido utilizadas por outras culturas do antigo Peru, como as dos paracas, nazcas e tihuanacos, ao sul. Isso, com base em estudos sobre esses referidos povos.

Acredita-se que os barcos sejam tão antigos quanto as culturas andinas pré-incaicas. Registra-se, porém, que nem os mochicas, chimus, incas ou qualquer das demais civilizações costeiras peruanas deixaram para a posteridade nenhuma ilustração das balsas de tronco. O que se sabe sobre elas chega em forma de relatos feitos pelos conquistadores espanhóis.

Em contrapartida, tanto na cerâmica mochica/chimu quanto de outros povos pré-colombianos, são observadas figuras que retratam homens remando e pescando sobre barcos de juncos. Os mochicas também nos oferecem representações de barcos de totora de construção bem mais complexa com proa e popa em formato de cabeças de dragão.

Segundo conta a lenda, o fundador de Chan Chan, capital do império Chimu, chegou à costa peruana em grandes embarcações e com um numeroso séquito. Os Chimus conheciam as correntes marítimas e os ventos do litoral peruano, de tal maneira que lhes foi possível navegar por todo ele e mar a fora até as ilhas guanera, e quem sabe mais além. Acredita-se que os comerciantes transportavam até 20 toneladas em mercadorias em suas balsas, impulsionadas pelos ventos e manejadas por um engenhoso sistema de timão duplo, conforme relatos espanhóis.

Thor Heyerdahl, em seu livro Pirâmides de Tucume: a indagação para a Cidade Esquecida do Peru, destaca que existe um considerável número de relatos sobre a navegação na costa peruana no período incaico. “E ainda graças à arte pré-incaica, sabemos que barcos de totora e as balsas de troncos eram muito usados, principalmente pelos moches”, afirma o norueguês.

De acordo com ele, os barcos de juncos foram mais comumente descritos em arte. Muito mais que as balsas de troncos. Algumas boas ilustrações são incluídas em seu livro, acompanhadas de texto. Em uma delas, um pescador moche aparece sobre um barco de totora. Outra retrata uma estatueta dourada que tem marinheiros em outra embarcação do mesmo tipo. Num jarro de cerâmica, novamente marinheiros e um barco de junco.

O antropólogo relata que “ainda nos dias de hoje, os barcos de torora são observados no Vale do Lambayeque, mas imediatamente ao Norte podem ser vistas embarcações feitas de troncos.

Ainda no Vale do Lambayeque, Heyerdahl descobriu um remo de prata em miniatura idêntico aos remos utilizados pelos chefes em ritos cerimoniais na Ilha de Páscoa, particularmente na celebração do culto do homem-pássaro.

Incas em alto-mar – Como contra-argumentação àqueles que defendem tese contrária à de Heyerdahl, a alegada incompetência naval dos povos da América Pré-colombiana cai por terra diante dos primeiros relatos a respeito da existência dos incas: em pleno alto-mar, no ano de 1527, uma jangada de balsa foi capturada por Bartolomé Ruiz, primeiro navegante europeu a cruzar a linha do equador no Oceano Pacífico. Nessa jangada, eram transportados ornamentos de prata e ouro, segundo relatos de Francisco de Jerez, membro da tripulação do barco de Ruiz e futuro secretário de Francisco Pizarro, responsável direto pela aniquilação do Império Inca.

“Carregavam mantas de lã e algodão, túnicas mouriscas e outras peças de vestuário coloridas de carmim, púrpura, azul, amarelo e diversas outras cores, bordadas com figuras de pássaros, animais e árvores. Possuíam pesos para medir ouro e também traziam esmeraldas, calcedônias e peças de cristal e resina. Transportavam tudo isso para trocar por conchas nacaradas, com as quais fazem contas”, informava o espanhol.

Conforme Jerez, essa embarcação capturada contava com uma tripulação de 20 homens e com uma capacidade de carga superior a 30 toneladas. Dos 20 marinheiros incas, onze foram lançados ao mar. Dos que ficaram, três foram mantidos como intérpretes.

Tratava-se de uma balsa de troncos leves, sobrepujada por uma cabine de bambus. Navegava a toda a vela. Além disso, seus 20 tripulantes, atuando como remadores, dispostos a bombordo e estibordo, conduziam-na.

Os barcos peruanos de então, segundo relatório de outro espanhol da época, Miguel Estete, eram feitos de troncos de balsa muito espessos, que boiavam como cortiça e eram solidamente amarrados uns aos outros. Sobre eles existiam armações que mantinham as mercadorias livres da água. Os mesmos eram impulsionados pelos ventos, que sopravam uma grande vela quadrada presa a um único mastro muito bem fixado. Eram, segundo Estete, embarcações muito seguras.

Pascual Andagoya, o primeiro espanhol a explorar o que viria a ser o Panamá, escreveu que “tanto no litoral peruano quanto equatoriano, os nativos saem para pescar em alto-mar em balsas feitas de troncos claros que são muito fortes… Esses barcos transportam cavalos e muitas pessoas e são navegados com velas, como navios”.

Acredita-se que os povos da costa peruana formavam uma linha de confederações mercantes e que o tráfego marítimo mercantilista era próspero até o Panamá.

Em relato de Pedro Pizarro, primo e pajem de Francisco, atribui-se ao grande senhor Yunga de Chincha (província próxima dos Nascas) algo em torno de 100 mil balsas no mar. Há registro de barcos com capacidade para o transporte de mais de 70 toneladas e para uma permanência no mar de meses, o que evidencia a consistência dos mesmos, notadamente os feitos de troncos.

Como os polinésios – Os barcos de troncos eram ainda impulsionados por velas triangulares e, neste caso, a vela aparece apoiada em duas barras finas, não estando, portanto, presas a um mastro. Essa forma peculiar de embarcação lembra bem os barcos polinésios.

No século XX, historiadores, arqueólogos e antropólogos preferem, muitas vezes, concluir a partir de conjecturas baseadas nas ciências modernas, do que reler os cronistas que descobriram o Peru, no rastro de Francisco Pizarro. Não somente estes sentiram, descobrindo o fantástico império inca, uma surpresa tão forte, diante de tamanho domínio de determinadas artes e ciências, mas tiveram ocasião, hoje definitivamente perdida, de interrogar os nativos sobre as suas origens e, consequentemente, legar-nos informações suscetíveis de nos orientar de maneira inteligente.

São os cronistas espanhóis – e não os antropólogos de hoje, como se poderia supor – que proclamaram abertamente que os habitantes da América pré-colombiana tinham traços asiáticos, tais como os povos da Polinésia.

No tocante à Ilha de Páscoa, que tal como Cusco, berço da civilização inca, era chamada de Umbigo do Mundo, são encontrados aspectos mais do que parecidos com determinadas peculiaridades das regiões e povos pré-colombianos.

Em Vinapu, ao sul da ilha, encontram-se enormes lajes de pedra trabalhadas exatamente como as de Machu Pichu, no Peru; todas as figuras humanas esculpidas têm grandes orelhas como os orejones (orelhas grandes) do Peru; o arranjo das plataformas pascunas, ou ahus, faz lembrar, estranhamente, as construções dos incas e as plataformas das ruínas pré-incaicas de K´emko.

Em O Livro dos Mundos Esquecidos, Robert Charroux ressalta que o explorador Michel Croce-Spinelli viu uma estátua cujas mãos tinham quatro dedos, o que – a confirmar-se – estabeleceria uma ligação entre a civilização de Páscoa e a de Tiahuanaco, o único local do mundo em que as figuras humanas têm essa peculiaridade.

Já através de um estudo feito por Thor Heyerdahl chega-se a uma estranha coincidência de nomes: tanto no Peru quanto na Ilha da Páscoa, uma divindade que atende pelo nome de Kon-Tiki.

Quando Roggeween descobriu a Ilha de Páscoa em 1772, notou com surpresa homens brancos entre os que se achavam na praia. E os ilhéus enumeravam com exatidão seus antepassados de tez branca até os tempos de Tiki e Hotu Matua, quando singraram através do oceano, “vindos de uma terra montanhosa a leste, requeimada pelo Sol”.

E foi justamente em vestígios na cultura, mitologia e língua do Peru que o antropólogo foi buscar a identificação da origem do nome do deus tribal polinésio Tiki. Segundo lendas incas, o chefe supremo do desaparecido povo branco do Peru tinha o nome quichua de Virakocha. Sua denominação original, porém, era Kon-Tiki ou Illa-Tiki, que significa Sol-Tiki ou Fogo-Tiki.

Kon-Tiki era o sumo sacerdote e rei-sol de uma raça dos lendários homens brancos dos incas que tinham deixado as enormes ruínas do Lago Titicaca. Conta a lenda que Kon-Tiki foi atacado por um chefe chamado Cari, originário do Vale Coquinho. Em uma batalha, a imensa maioria dos misteriosos brancos barbados foi trucidada, mas Kon-Tiki e um pequeno grupo conseguiram escapar em direção ao litoral, de onde partiram em balsas para as bandas do Ocidente.

São muitas as versões sobre o episódio. Outro relato conta que um ser vindo do norte, Kon, foi vencido e expulso por uma divindade mais poderosa, Pachacamac.

Heyerdahl não tem dúvidas sobre o fato de o branco deus-chefe Sol-Tiki que, segundo os incas havia sido, pelos pais destes, expulso do Peru para o Pacífico, é idêntico ao branco deus-chefe Tiki, filho do Sol, a quem os habitantes de todas as ilhas orientais do Pacífico reconheciam como o primitivo fundador da raça.

Referências:

Pirâmides de Tucume: a indagação para a Cidade Esquecida do Peru, Thor Heyerdahl
O Livro dos Mundos Esquecidos, Robert Charroux
Las Olas del Surf, em busca da verdadeira origem do surf, Dejair dos Santos