Leitura de Onda

A prancha na cama

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Surf treino Hidrojets em Santa Catarina, anos 80. Foto: Arquivo Pessoal Washington `Fiapo´.

Eu tinha 12 anos, se tanto. Acabara de ganhar minha primeira prancha seminova, a já revisitada Hidrojets amarelo limão, estonteante, ainda com forte cheiro de resina. 

 

A prancha deve ter sido do Fred D´Orey. Tinha sido usada duas vezes por um profissional e descartada. Rejeitada pelos outros, para mim ela era um objeto mágico.

 

Não tinha onda, mas eu não consegui desgrudar da prancha. Cheguei em casa e, litúrgico, fechei a porta do quarto como se estivesse com a namoradinha que eu ainda não tinha.

 

Posicionei meu sonho de consumo em cima da cama, em pé, encostada na parede, e decidi sentar no chão, encostado no armário, para entender melhor suas curvas. 

 

Patético, sei que hoje parece patético, mas naquele dia era solene. 

 

Estava eu viajando na forma e nas cores da Hidrojets quando, do nada, a prancha começou a escorregar e… tum! A borda acertou em cheio uma estante, abrindo um enorme teco.

 

Situação ridícula, eu nem tinha caído com ela. Voltei na Hidrojets com cara de pobre coitado para implorar por um remendo digno para a minha prancha dos sonhos.

 

Consegui, e o resto da história é o que me faz estar aqui, à frente de um texto sobre surfe. A prancha me conectou definitivamente com o mar.

 

Lembrei o caso outro dia com um amigo numa conversa sobre o surfe e seus símbolos.  Percebi que, no passado, as pranchas – as minhas e de meus amigos – tinha um significado forte, uma carga simbólica visível. 

 

Tanto que estão em nossas memórias até hoje. Lembro mais de minhas primeiras pranchas do que de minhas últimas, e olha que não sofro de qualquer doença de memória. 

 

Posso até listá-las, em ordem: prancha biquilha sem marca (que mais tarde descobri ter sido feita pelo amigo Alvarus), Gustavo Jordan (uma 5´2´), Hidrojets, Proline e Breakaway (shape do Recreio, das antigas).

 

Daí veio uma sucessão de Power Tools, com quem eu fazia a preço de custo. Depois segui para os shapers da extinta Hidrojets: primeiro, com Ricardo Martins, que assinava “shapes de precisão”, e, mais tarde, com Joca Secco.

 

Tenho certeza de que muitos de nós têm essa lista guardada num canto seguro do cérebro.

 

Várias dessas relíquias são apenas sentimentais, pranchas desconhecidas, de shapers locais. Mas, como disse o publicitário, certas coisas não tem preço, não podem ser valoradas.

 

Hoje, a relação com as pranchas parece estar um pouco diferente. Há mais e melhores modelos, de todos os tamanhos, bordas, bicos e rabetas. Não faltam quilhas, roupas de borracha, cordinhas. Uma para cada tipo de onda, uma para cada tipo de humor.

 

A relação parece ser mais de fetiche, de produto, como quem compra um carro maneiro. E isso não é ruim, é apenas diferente. Tenho um amigo que dispunha, até recentemente, de mais de uma dezena de pranchas de todos os tipos. Embora não tenha tido tempo para se relacionar mais intimamente com cada uma delas, ele transformou sua experiência em evolução. 

 

Ganhou um surfe sólido, com movimentos inteligentes e precisos sobre a prancha, resultante dos anos de testes numa enorme variedade de modelos. Ganhou um surfe diverso.

 

O tempo muda as coisas. Aquele moleque de 12 anos, que só tinha uma Hidrojets mas era o sujeito mais feliz do quarteirão, não imaginou que, aos chegar aos 40, teria em casa três pranchas para as mais variadas circunstâncias e quase nenhum tempo disponível para surfar.

 

 

Tulio Brandão é jornalista, colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou nove anos no Globo como setorista de meio ambiente e outros três anos no Jornal do Brasil, onde cobriu surf e outros esportes de prancha. Atuou ainda como gerente de Sustentabilidade da Approach Comunicação. Na redação, ganhou dois prêmios Esso, um Grande Prêmio CNT e um Prêmio Abrelpe.  

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".