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A lycra que não saiu da água

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Apesar deste tubo Kelly Slater não evolui no Billabong Rio Pro 2011 e Bobby Martinez faz a mala do campeão. Foto: © ASP / Kirstin.

O tubo de Kelly Slater não foi suficiente para virar a bateria em cima do compatriota Bobby Martinez no round 3 do Billabong Pro, no Rio. Tocou a sirene, o som era inapelável: estava decretada a derrota prematura do decacampeão mundial, numa fase em que ele normalmente vence em ritmo de treino.

 

Martinez saiu da água para a entrevista de praxe da ASP, mas Kelly ignorou as regras da entidade. Manteve-se dentro da água, vestido com a lycra de competição que estampava o número 1, posto ocupado por ele até aquele momento no ranking mundial.

 

O maior campeão da história, um surfista maduro, de 39 anos, violou uma regra da entidade máxima do esporte para ter direito a uma hora e meia num mar medíocre, insosso. Estranho. Houve quem enxergasse um simbolismo naquele ato de se recusar a tirar a camisa de líder do ranking, já que sua derrota significava a perda iminente do primeiro posto. 

 

Mas, como lembrou o amigo Max, vamos simplificar: talvez ele estivesse ali apenas para esfriar a cabeça e tentar dispersar a multidão que o aguardava na beira da água. Ou para encontrar as ondas que cismaram em não aparecer durante a fatídica bateria. Que competidor derrotado já não desejou ficar na água para se vingar da má sorte durante a bateria?

 

Cerebral como poucos, Kelly deve ter sofrido dentro d´água com números que normalmente lhe favorecem na competição. Ele fez o certo a menos de um minuto para o fim: encontrou uma direita arrumada, se entocou pelo tempo que conseguiu e saiu razoavelmente limpo. Precisava de um 7,67. O público, acostumado às boas notas do americano, apostou em sua vitória, mas o locutor narrou um 7,27. Não havia tempo para reação.

 

Kelly também deve ter pensado no amigo Martinez, desesperado por pontos que o tirem da condição de paciente terminal no ranking unificado. Sem um grande resultado, é certa a sua degola no ajuste pós-Nova York. Os juízes – e muitos na areia – também sabiam disso.

 

Durante o tempo em que esteve na água, o campeão entubou, acertou manobras aéreas e roubou a atenção do público. A multidão esqueceu de Jordy Smith – que perdia para Josh Kerr – e preferiu ficar de olho na Channel Island branca pilotada por um careca, que surfava solitário, sem ganhar notas.

 

Ao sair da água, recebeu a notícia de que seria multado em US$ 5 mil. Com essa grana, nós surfistas comuns nos esbaldamos por uma semana nas Maldivas ou coisa melhor. Ele preferiu gastá-la em uma hora e meia de Meio da Barra num dia de ondas vagabundas. Sei não.

 

Resignado com as circunstâncias, só faltava a declaração oficial, mas não necessariamente sincera: “Acho que não acordei com muita disposição. Talvez tenha faltado um pouco de motivação, não sei, é difícil dizer, mas não fiquei muito chateado com a derrota. Bobby mereceu a vitória. Depois, eu quis ficar surfando porque tinha boas ondas e ninguém na água. Desde que eu cheguei ao Brasil, não tinha conseguido surfar sozinho, então quis aproveitar”.

 

Joel Parkinson já lhe tirou o posto de número um. E, até o fim desta semana, Adriano de Souza pode tomar a posição do australiano. Kelly sabe que o trem atropela quem fica no round 3.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".