Leitura de Onda

A espera

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Carlos Burle domina o monstro sozinho, enquanto todos adversários o assistem. Foto: Levy Paiva / Quiksilver.

Lembro de muitas noites mal dormidas à espera de um dia de surf. O surf desenhado nos dedos em qualquer superfície curva da cama, olho na janela para ver pelas nuvens se a direção do vento mudou e, no altar, a prancha pronta para o casamento com o mar.

Sempre que passo por uma situação dessas – acreditem, eu ainda desenho involuntariamente cutbacks com os dedos – penso nas campanhas publicitárias, vídeos e viagens vendidas graças à ideia de que o que dá sentido ao surf é a busca, a busca pela onda perfeita. Não discordo (e acho o conceito genial), mas emendo: um surfista mortal espera muito mais que busca.

Espera o trabalho acabar, espera o fim de semana chegar, espera a mulher concordar, espera a filha brincar, espera o vento virar, espera o swell entrar, espera a onda chegar.

Quando penso na ansiedade da espera, vem à cabeça dois extremos: o surfista amador que mora longe da praia e só vê o horizonte se deformar pelas ondas do mar nas folgas e o super surfista que, uma vez convidado a participar do Eddie Aikau, em Waimea, se contorce durante toda a temporada sem saber se o evento mais importante de sua vida será realizado.

Entre meus amigos, estão vários órfãos de maresia que sofrem durante a semana na selva de pedra, mas só conheço um herói brasileiro na lista titular dos eleitos para o Eddie Aikau.

Carlos Burle é um surfista especial. Não falo da inquestionável habilidade em ondas grandes, reconhecida pelos melhores do mundo. A diferença do cara está na cabeça. Burle é um sujeito com inteligência fora da curva: entende a onda, calcula os riscos, mantém a calma.

Ele é um modelo de surfista que eu apostaria ser capaz de preservar a serenidade à espera de um evento que, por várias temporadas, simplesmente não aconteceu. Estaria em paz mesmo sabendo que a lista deste ano não é a mesma do ano que vem. É isso: o surfista convidado de 2011 pode passar a temporada em Oahu à espera do sonho de estar no Eddie, não entrar na água por falta de swell e, em 2012, simplesmente não ser lembrado pelos organizadores.

Burle passou anos à espera. Declinou do convite uma vez por contusão, outra por fidelidade à dupla com o amigo e parceiro de tow-in Eraldo Gueiros (para ficar em terceiro na Copa do Mundo). A retaliação veio a reboque: foi excluído da lista.

“Consegui recuperar a posição com a minha dedicação às ondas grandes. Aí, ano passado, depois de vários anos na lista sem conseguir correr, estava na lista de novo. Vi que ia acontecer, o palanque estava construído. Confesso que a ansiedade aumentou muito. Fiquei ansioso a ponto de não surfar na véspera para não me machucar. Quando vi o Tom Carroll se contundindo pouco antes do evento, percebi que minha decisão tinha sido acertada.”

O sereno Burle não tem vergonha de assumir a ansiedade e dizer que o Eddie de 2010 foi um dos momentos mais marcantes de sua vida. Em 2011, novamente na lista titular, ele está mais tranquilo. Mas, depois de uma conversa inicial sobre o assunto via Skype, ele admitiu ter sonhado com a ansiedade causada pelo evento.

Este ano, Waimea pulsou forte a ponto de rolar uma chamada. Burle conta que, na areia lotada de expectadores desde os primeiros raios de sol, a tal ansiedade pela espera domina. Ele chegou a se preparar para entrar na água, porque está na primeira bateria, mas os organizadores decidiram não botar o evento na água porque o swell estava em declínio. Antes de ir embora da praia, ouviu o relato ansioso de um estreante casca-grossa:

    
“Na praia, o Chris Bertish, um sul-africano que chegou ao Eddie este ano, falou: consegui entrar na lista depois de muito tempo, e ainda nem sei se vou correr este evento algum dia.”

A leitura certa dos fatos ajuda Burle. Em vez de se lamuriar com a espera, ele prefere entender o evento. “Você tem que merecer estar lá. É fundamental a dedicação, mas tão importante quanto é o equilíbrio na vida. Até porque, no surf (e na vida), você não controla muito as coisas. Em Waimea, dizem que é o Eddie quem escolhe o vencedor.”

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".