Leitura de Onda

A escada

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Tulio Brandão é local do Leblon, Rio de Janeiro. Foto: Luiz Claudio.

Nasci num Leblon diferente da novela. Não era o principado de Mônaco tupiniquim de hoje, coalhado de artistas, empresários ricos e paparazzi. Na crise do início dos 80, o Leblon não conseguia ser mais que um bairro de remediados, ponto final de algumas linhas de ônibus.

 

 

A praia, esquecida pelos próprios moradores, era extremamente poluída e frequentada por surfistas mais parecidos com personagens de Dogtown que com os de Manoel Carlos. Neste ambiente, conheci o surf, aprendi a sobreviver com as leis nem sempre justas da rua.

 

Era uma galera que assustava quem passava perto. Tinha muito sangue bom, mas também tinha bandido e muita droga. Dividia diariamente o line-up com pessoas que, fora dali, assaltavam, traficavam. Diziam, nas rodas dos moleques mais novos, das quais eu participava, que um ou outro era matador. Dois morreram assassinados, outros simplesmente sumiram.

 

Éramos quase bichos perto da geração que predomina no mesmo pico hoje.

 

Poucos anos atrás, no Globo, fiz uma matéria de comportamento sobre a nova geração de surfistas do Leblon, que na época se apelidavam de “lanhos”. No meio deles, não tinha assaltante, traficante ou matador.

 

Entrevistei dono de loja, produtor de vídeo, empresário, artista plástico, músico e até um exemplar de surfista profissional de ponta, o Trekinho. O grupo tinha uma vibe positiva e, aparentemente, não havia ali sequer um escravo da droga, como cansei de ver nos 80.

 

Fui para casa engasgado com a diferença para a minha geração. Por um momento, lamentei o fato de ser velho e ter participado, no Leblon, de uma geração mais crua, sem oportunidades, grana ou estímulo para empreender na vida.

 

Pouco depois, me arrependi. Não cresci numa geração perdida, como tantos dizem. Eu e meus amigos de praia abrimos as portas do mundo para a nova geração. No nosso gueto dos anos 80, também geramos cultura, ainda que mais marginal. Estimulamos a democracia praiana no Leblon, ao incluir sem distinção e preconceito surfistas das comunidades carentes próximas. Sobrevivemos, vencemos no ambiente adverso. Muitos de nós temos filhos e mulheres.

 

Construímos amizades respeitosas que duram, firmes, até hoje. E mesmo os erros foram importantes: eles serviram de lição para as novas gerações. Se não tivéssemos errado, os mais novos errariam, em algum momento. A vida é um processo, um aprendizado constante, uma escada cheia de altos e baixos, mas com uma curva sempre ascendente. Acredito nisso.

 

O legal é que a garotada também acredita. A maioria deles trata a velha guarda com reverência, como se soubesse que eles são o que são por causa dos velhos surfistas.

 

O contrário também acontece: olho para a nova geração com admiração. A nova abordagem da vida, a conciliação mais equilibrada entre o lazer e o trabalho e, claro, o novo jeito de surfar, que combina o nosso velho carving com manobras progressivas de um novo tempo.

 

Levei esse olhar para minhas filhas: tenho certeza de que, graças aos meus erros e acertos, elas serão muito melhores. É um pouco como aquele verso simples da música do D2: “Eu me desenvolvo e evoluo com meu filho, eu me desenvolvo e evoluo com o meu pai”.

 

Tulio Brandão é colunista do site Waves e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicaçã

 

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".