North Shore

Bastidores de Pipeline

João Guedes comenta os bastidores do primeiro dia do Billabong Pipe Masters.

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Público comparece em peso à abertura do Billabong Pipe Masters. Foto: © WSL / Heff.

 

O prólogo

A toada parece repetir-se novamente. Acordo por volta das cinco horas da manhã, vou à varanda e uma brisa fresca anuncia que hoje – sim, hoje – começaríamos a decisão de 2017. O dia revelou-se, e com ele, a rainha de todas as rainhas disse-nos: cessai tudo que a antiga musa canta, pois um valor mais alto se levanta…

A antessala e o julgamento.

O primeiro dia do campeonato, em Pipe, foi o endereço de uma valiosa lição a respeito do tempo, das dobraduras dele e, sobretudo, da capacidade de alguns camaradas reagirem contra o inexorável fluxo dos acontecimentos.

Os personagens principais, nem sempre, encontram-se, concomitantes, no palco. Gabriel e Miguel compuseram uma cena juntos; Slater e Julian, por sua vez, atuaram em solo. Cada um dos quatro, todavia, teve força para concentrar a atenção dos mais de mil espectadores que se concentraram ao redor do palanque. Somente eles… Ninguém mais revelou-se apto para concorrer com esses camaradas.

O dia abriu com uma maior movimentação em Banzai. Crianças e senhoras com cabelos grisalhos dividiam o mesmo espaço com os demais espectadores. Não saberia dizer quem possuía a maior representação, mas, certamente, o cenário estava muito longe de revelar uma hegemonia.

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Apesar de muita luta, Jadson André perde na estreia. Foto: © WSL / Heff.

Um ecletismo curioso que nos permite pensar em uma estratégica revisão de pressupostos.
Antes da primeira bateria, cerca de trinta cabeças lutavam na arrebentação à procura de um melhor posicionamento. Todos concentrados em Pipe, apenas em Pipe. Rock Piles permaneceu vazia até o relógio bater oito horas ou a sirene anunciar o início dos trabalhos. Na areia, tudo convergia para um pacto tácito entre todos: o mar estava lindo, a temperatura agradável, mas, para falar a verdade, o importante ainda estava por vir; isto é, a decisão entre Gabriel e Florence. Dois surfistas tão diferentes que seria quase uma crueldade não acreditar em uma rivalidade entre eles.

No meu caso, confesso que a primeira bateria do dia tinha contornos de uma decisão. Eu tenho enorme simpatia por Jadson. A situação no circuito parece-me injusta, mas não acredito que essa sensação nasce de um julgamento objetivo dos fatos. Apenas sinto… O camarada jogou-se, de coração aberto, numa loteria que poderia resultar em seis dezenas. Surfou sério e com força. Por aquilo que percebi na areia, quando ele achegou-se aos seus, o resultado pesou-lhe as costas.

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Miguel Pupo concentrado para brilhar na estreia. Foto: João Guedes.

O posto avançado nas areias do Litoral Norte.

Todos brasileiros; jornalistas e competidores, concentravam-se ao lado esquerdo do palanque. Depois que me sentei, percebi que Miguel e Italo sentavam-se pouco mais de dois metros atrás de mim. À frente, a mulher de Pupo brincava com a filha. As baterias somavam-se e a minha atenção dividia-se entre o que ocorria na areia e a disputa no mar. Havia uma certa tranquilidade, inconcebível frente ao tamanho das ondas, a seriedade da competição. A calma, cantada em verso e prosa, de Miguel, parecia encontrar um lugar para estar.

A única ocorrência que foi capaz de suspender, ainda que momentaneamente, aquela supressão dos acontecimentos, foi provocada por Julian. Cercado por crianças, aplaudido por todos; o camarada fez e desfez na sua bateria. Julian surfa muito. Assunto encerrado. Se foi favorecido algumas vezes, isso não permite a ninguém desmerecer o enorme talento do rapaz. Tubo, aéreo, reviravolta…

Se há uma lição a aprender com aquilo que vi, ela encontra-se na certeza de que o surfe é, isso sim, uma luta pelo equílibro entre homem e natureza. Em nada, essa busca deve ser entendida como uma disputa entre nações, culturas ou qualquer outra bobagem inventada para distrair-nos do que realmente importa. Pipe tem o estranho poder de pôr tudo em seu lugar, tudo em seu lugar…

Gabriel e o temido ataque dos havaianos.

Sejamos francos, nada aconteceu. A areia estava calma, Charles chegou depois do menino encontrar-se a um minuto de entrar no mar e um único camarada balançava uma bandeira do Havaí em que se podia ler “Go, Go, John”. Apenas para ilustrar a irrelevância da provocação: embora tenha andado muito pelo Litoral Norte, eu vi essa mesma bandeira, com os dizeres de incentivo, somente em três lugares. Convenhamos que isso não parece caracterizar um clima de guerra…

Seria muita ingenuidade acreditar que Gabriel ficou abalado com aquilo. O rapaz é campeão mundial. Não creio ser razoável, qualquer um de nós que não se tornou o melhor do mundo em sua atividade, acreditar que um grito de um bobo, na véspera de uma bateria, tornar-se-ia capaz de abalar-lhe o humor. Os fatos são: de um lado, Gabriel perdeu a sua bateria porque Miguel surfou como gente grande; de outro, Gabriel perdeu a sua bateria porque, possivelmente, ele acreditou que fecharia a contenda a qualquer momento.

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Gabriel Medina se dá mal na primeira fase. Foto: © WSL / Heff.

Às vezes, a confiança excessiva não é boa coisa. Ao meu lado, a tranquilidade com que a mulher de Miguel amamentava era admirável. Nem mesmo aquela onda, aquela que merecia dez, foi capaz de tirar-lhe atenção da pequena. Miguel é um camarada de sorte, cujo surfe somente deve-se ao seu enorme talento. Tomara que 2018 seja um bom ano para ele no circuito.

O tempo é comandado por Florence.

A bateria de Florence foi muito aguardada pelo convescote de Pipe. Quando o camiseta amarela saiu do palanque, crianças correram, senhoras suspiraram, os locutores da areia confundiram-se com tietes adolescentes. Tudo no script, menos a monstruosidade com que Florence controlou o tempo das ondas de Pipeline. Como surfa…. Como surfa… Ele fez chover na arrebentação. Atrasou, acelerou, parou no ar… Ele encontra-se, nesse primeiro dia de campeonato, distante muitas léguas de qualquer um…

Gabriel pode vencê-lo? Sim, mas terá de encontrar uma humildade dentro de si a fim de que acumule algumas notas antes do fim das baterias. Se não fizer por ele mesmo, peço que pense nos meus três filhos e poupe o pai deles de morrer do coração…

O retorno.

Hoje, não tenho nada para falar de Slater. Ele tem a minha idade… Ele é um monstro. Adorado, aclamado… e nada disso é imerecido….