Jaime Viudes

A grandeza do Anão

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Leandro Machado e Jaime Viudes no Baguari, em Ubatuba (SP). Foto: Paulo Camargo.

Em meados de maio, meu WhatsApp tocou: “Câmbio, bandido! Tu não me leva pra surfar em Ubatuba, não? Tenho mó vontade de conhecer aquela onda do Baguari.”

Era meu amigo Leandro Machado, do Rio de Janeiro, carinhosamente apelidado de Anão.

Trabalhador, local do Catete, poucos anos de surf e longboarder apaixonado pela modalidade.

“Eu te levo, Anãozinho! Sabe que estou na correria forte para o Longboarding Experience, que vai rolar lá na praia do Sapê, né? Uma ida até Ubatuba viria a calhar para resolver alguns detalhes do evento.”

Anão: “Não vai embaçar lá, não, né? Quero ir pra pegar onda, não pra te ajudar a resolver seus problemas.”

Eu: “Aqui é surf, filhão. Só trabalho nas horas vagas!”

A previsão mostrava uma semana com condições bem variadas, o que seria importante para o Anão se testar em ondas diferentes. Levei o fotógrafo Paulo Camargo comigo.

Chegamos no ápice do swell. Fiquei tentado de ir até Itamambuca, mas resolvi começar devagar com o Anão. Fomos para o Sapê, pois sabia que as condições estariam mais amenas por lá.

Pouco mais de 1 metro, ondas bem alinhadas, mas como a ondulação vinha do quadrante sul, era preciso escolher as certas. Eu só pensava em Itamambuca.

“Vamos surfar, depois eu resolvo as paradas do evento.”

O Paulo resolveu surfar também. Acelerei o Anão e entramos em frente ao ilhote. A arrebentação estava chata. As séries eram incessantes. Um tempo depois, ele aparece meio cansado. Dei umas dicas sobre o pico e sua prancha nova. Ele pegou algumas, mas percebi que não fez a cabeça. Ficou com cara de poucos amigos. A Renata Porcaro apareceu no fim da session.

“Todo mar oferece um aprendizado. Um bom posicionamento faz a diferença. Reparou como a Renata só escolhia as ondas que ela tinha certeza que iam abrir? Se você pegar qualquer uma só porque vai conseguir entrar nela, vai perder a sintonia com as melhores e gastar energia à toa. Boas escolhas garantem a evolução. Precisa de boa pista para praticar as manobras.”

Fiquei meio bolado porque o Anão não se divertiu e porque não fizemos nenhuma imagem para anunciar o evento. Pensei comigo: “Tudo bem, amanhã faremos… se não chover.”

Como de costume quando viajo, a primeira noite dormi mal. Acordei bipolar. Chovia! Gosto do café passado naquelas cafeteiras italianas de alumínio, que não pode deixar a água ferver, senão o café amarga. O Anão deixou ferver e já foi motivo para meu humor despencar de vez. Mesmo assim, tomei um balde. Fiquei pilhado. Precisava gastar energia.

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Leandro Machado, o “Anão”, em ação nas Toninhas. Foto: Paulo Camargo.

 
Checamos o mar em frente de casa na Praia Grande e percebi que estava pesado, com influência de sudeste.

“Porra, devia ter caído em Itamambuca ontem. Agora o canto deve tá ruim”, falei, fazendo questão de reclamar.

Anão: “Vamos no Sapê. Tu não precisa fazer imagem para o evento?”

Eu, irônico: “Nesse sol?”

O Paulo Camargo só me fitou. Ele aproveitou que chovia e voltou para casa terminar um trabalho fotográfico seu que estava atrasado.

Fomos checar o Baguari, no canto esquerdo. Estava muito pesado, mas de fora não parecia ter mais de 1 metro e meio de onda. “Vamos cair aí mesmo!”

Conseguia ler os pensamentos do Anão. Devia ser algo do tipo “Caralh%&*, agora tô fudid@#%. Esse cara é maluco!”

“Com essa prancha que eu tô?”

“Sua prancha é híbrida, pau pra toda obra! Pode ir que ela aguenta! Esquece monoquilha hoje, configura com quilhas 2+1. Uma central 7” e estabilizadores maiores resolve.”

Comecei a me trocar e traçar a estratégia: “Tá vendo o canal?”

“Que canal?”

“Parece que não tem porque tá de sudeste. A corrente joga as ondas para as pedras, mas ali é o canal.”

Não havia ninguém surfando no canto e nessa hora, mais para o meio, um cara sai do mar com o pranchão partido.

“Porra, Viúdes!”

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Anão se diverte nas ondas ubatubenses. Foto: Paulo Camargo.

 
“Não queria conhecer o Baguari? Fica frio! Depois daquela primeira esquina de pedras, forma uma baía. A gente fica ali esperando a série passar e depois dá um sprint pro fundo. Respira normal. Mente tranquila. Se o mar te prender, não adianta ficar lutando com todas suas forças, economiza energia para quando ele te largar.”

Tentei ser mais positivo: “Parece que tá difícil, mas tá moleza, Anãozinho. Rapidinho a gente chega no fundo.”

Já na entrada, percebi muita força d’água. Chegamos na tal baía e tava na cara que ele não queria estar ali. Três bombas de 6 pés arrebentaram no fundo e um clarão abriu. No impulso, deitei na prancha e gritei pro Anão remar.

Mas logo percebi que bem longe uma série das grandes despontava no horizonte. A primeira veio avassaladora, com mais de 6 pés. Furei e dei duas cambalhotas embaixo d’água agarrado no pranchão. O Anão estava bem mais para trás. Menos mal. Vieram mais umas 10 ondas como essa. Se o Anão devia estar arrependido de ter caído, eu passei a me arrepender também.

Varei. Ele ainda lutava. Sem forças, remava todo descompensado. As mãos mal alcançavam a água. Olhei para o fundo e vi outra série despontando: “Rema, porra! Não para! Vamo, Anão! Vai, carai!”

Resolvi pegar mais leve para não transmitir desespero. Na real, eu estava bem preocupado que ele tomasse outra série na cabeça. Fatalmente seria jogado contra as pedras.

Varou no limite! A última passou com o lip dobrando sob sua cabeça e por pouco não voltou com a onda. Comecei a rir e tentei acalmá-lo: “Relaxa. Tem um pouco mais de 1 metro. Não tá tão grande assim!”

Sabe quando a pessoa passa uma situação de vida e morte? Os olhos saltados, adrenalina a mil…

“Vamos remar mais para o meio.”??“Lá parece que tá maior.”

“Mas tá longe das pedras.”

Nos afastamos uns 50 metros do canto e veio uma série com mais de 6 pés, ondas bem surfáveis, mas nem todas abriam. Peguei algumas e o Anão remava cada vez mais para o fundo quando alguma onda ameaçava aparecer. Dei um tempo e cheguei nele:

“Vai ficar surfando a vida toda na sua zona de conforto? Não se sentir confortável faz parte, mas você tem oportunidade de superar seus limites e isso faz o surf ser tão especial. Respira, se posiciona mais embaixo e pega pelo menos uma. Se quiser, vai embora nessa. Se quiser ficar mais, não passa o quebra coco do inside, porque daí não vai dar para voltar mais.”

Ele engoliu seco, remou para baixo do pico e foi numa intermediária com bom tamanho.
Voltou para o fundo e pegou uma da série. Pisou muito na rabeta, com a base juntinha, como se estivesse surfando uma marola de meio metro. Incontrolável.

“Abre um pouco mais a base. Pisa um pouco mais para o meio. Onda maior, prancha configurada para uma performance mais arrojada. Muda a chave!”

“Você sempre fala para eu surfar de base junta!”    

“Mas hoje pode abrir um pouco mais. Vai te dar mais controle porque vai descer seu centro de gravidade.”

“Mas…”

“É abrir ou morrer. Abre!”

Mais uma onda na sequência. Controle total! Ainda mostrou disposição para remar em outras, mas acabou não conseguindo entrar. Até que uma das maiores séries do dia entrou e ele remou na onda errada. A de trás explodiu mais no fundo. Eu voltava do inside e vi tudo de frente. O Anão apontou o bico do longboard para areia e pegou uma espuma gigante deitado na rabeta da prancha. Eu não podia acreditar. Ele sumiu por instantes. Pensei que tivesse sido engolido, quando foi cuspido de dentro do espumeiro. E vinha bem na minha direção, descontrolado, quicando como se estivesse em cima de um touro brabo. Tentei sair da sua rota. Passou me lambendo, e mesmo no olho do furacão, gritou: “Tô saindo.”

“Jura?”, pensei.

Cheguei no fundo com dificuldade. Descansei enquanto ria da cena. “Que Anão cabuloso!”, bradei.

Peguei mais algumas e saí. Ele estava com sorriso maroto. Sensação de plenitude estampada na cara. A alma transbordava do corpo.

Pediu para um moleque tirar uma foto nossa. “Essa vai ficar guardada na eternidade, bandido”.

Me abraçou e agradeceu. Respondi: “Valeu ou não valeu a pena?”

“Valeu! Mas pouco mais de 1 metro de onda é caralh@#$!”

Rimos muito.

“Agora vai pagar um almoço no Alantejano, Anão.”

“Porra, lá é caro!”

“Vai pagar, aproveita que hoje pode ser seu último almoço. Amanhã o mar sobe mais. Quero comer sushi.”

Mas, no dia seguinte, o mar baixou. Ele surfou outros picos de Ubatuba com a moral alta e teve a oportunidade de pegar Toninhas com terral e sol, para uma perfeita sessão de fotos de longboard clássico. Configurou a quilha para single fin, fechou a base, drive solto, curvas redondas, caminhou até o meio da prancha para ganhar velocidade. Ganhou confiança, deu show.

“Aí, Anãozinho, depois da tempestade vem a calmaria!”

“Só faltou o Paulo fazer uma foto minha daquele marzão no Baguari, hein, Jaime?”

“Pois é. Agora ninguém vai acreditar nessa história.”