Surfe e Medicina

Zé e a fonte da juventude

Dr. Guilherme Lima entrevista o pioneiro José Carlos Paioli, de 72 anos, em bate-papo sobre longevidade no surfe.

0
José Carlos Paioli foi um dos desbravadores do surfe em São Vicente.

Surfar para sempre. Sim, esse é o desejo de todo amante deste esporte. Mas será que isso é possível? Eu, por exemplo, beirando os 40 anos, percebo uma nítida diferença (exponencial) para os meus 15, 20 e 30 anos de idade, e você?

Para deixar esse texto mais interessante, convidei o paciente, grande amigo e legend José Carlos Paioli, o “Zé”, que aos 72 anos continua esbanjando saúde e alegria com seu longboard pelo litoral paulista.

Zé, quando você começou a surfar e onde?

Comecei no final de 1964, aos 15 anos de idade, na praia do Itararé, São Vicente, com prancha de Madeirite de construção. Antes fui nadador, duas vezes recordista santista e vicentino, além de campeão da travessia da baía de São Vicente, no ano de 1965. Essa era uma das provas mais tradicionais de natação da cidade e que permanece até os dias atuais.

Como concilia a vida de trabalho e surfe? Teve algum momento que precisou deixar o surfe de lado devido ao trabalho?

O surfe sempre foi e é parte importante de minha vida, entretanto, já na minha adolescência para a fase adulta, fixei como objetivo, conseguir uma formação superior em engenharia. Tive um vácuo no surfe, pois parei entre os anos de 1969 e 1972, ano que entrei na faculdade.

No ano de 1972 retornei ao surfe para, a partir de então, nunca mais mais parar. Passada a fase de faculdade, com o canudo na mão, foi o início de uma nova fase de minha vida, a hora real e verdadeira de começar a trabalhar e viver da profissão. Como engenheiro mecânico, não tinha outra alternativa a não ser trabalhar em uma fábrica, e foi onde iniciei profissionalmente. Ambiente agressivo, rude, difícil, enfim, nada a ver com o que sempre estivemos acostumados, de natureza, esporte, aventura, amigos… Mas tinha a consciência que esta era a minha realidade e tinha que me adaptar.

Certo que o objetivo era a realização profissional, mas o surfe havia sido muito importante para ter conseguido chegar nesta etapa de minha vida e tinha que continuar. O que tínhamos de possibilidades, finais de semana, feriados e férias. E foi desta forma que me mantive no esporte, por toda uma vida, conciliando, como até hoje, com minha vida profissional.

O que posso dizer é que o trabalho é de extrema importância para todos nós, sim, não podemos deixá-lo, mas o surfe também, pois é o que nos proporciona o equilíbrio entre a prática de um esporte, que é a essência do prazer e do lazer, com nossas obrigações e responsabilidades profissionais.

Qual a lesão mais frequente que já teve surfando?

Quando retornei ao surfe, no ano de 1972, as pranchas já não eram os longboards dos anos 60. Havia se iniciado a era das mini-models, pranchas menores, mais estreitas, rápidas e que passariam modificar totalmente as condições da prática do esporte.

Por isso, tive diversas lesões por impacto da prancha no corpo, tais como quilhada na perna, no corpo, na cabeça e por pelo menos três vezes, por bater a cabeça no fundo. Uma das vezes, cheguei a sentir a coluna, fato que me fez lembrar a lesão do Taiu Bueno, na praia de Paúba. A partir daí passei a tomar mais cuidado, controlando mais as manobras e passando a cair de forma a preservar a cabeça deste tipo de impacto. Realmente muito perigoso.

Dr. Guilherme Vieira Lima cuida da saúde do seu paciente em Juquehy, litoral norte paulista.

Já precisou parar de surfar devido algum trauma? Por quanto tempo?

Uma das contusões mais sérias no surfe que tive foi no joelho, surfando com pranchinha. Torci o joelho direito ao fazer um drop e curva, em uma onda bem crítica. Em consulta ao ortopedista tive o diagnóstico de lesão no menisco. Felizmente consegui me recuperar e voltar a surfar normalmente. Essa lesão me obrigou a parar por pelo menos 20 dias até o total melhora do inchaço e eliminação da dor e do incômodo, com mais dez dias de fisioterapia.

Recentemente tive uma lesão no ombro direito, afetando um dos tendões do braço direito. Entretanto, com seus cuidados, me recuperei após 15 a 20 dias, e voltei a surfar normalmente.

Atualmente você tem alguma lesão relacionada ao surfe?

Alguns incômodos na coluna com sensação que ela vai travar e, algumas vezes, tenho incômodos nos joelhos, principalmente no direito, não sei se em decorrência da torção que tive no passado. No tornozelo esquerdo também, creio eu, em decorrência da torção que tive jogando futebol.

Já teve ou presenciou alguma lesão grave no mar?

A lesão mais grave que tive no mar não foi muscular ou ortopédica, mas sim de um corte profundo por quilha, no tornozelo esquerdo, em uma viagem para Fernando de Noronha. Também presenciei várias lesões de surfistas, não musculares, mas sim de acidentes como quilhadas e impactos da prancha sobre o corpo e vice-versa.

Já passou por uma situação de perigo de vida?

O maior risco que nós surfistas temos, além de acidentes com a prancha, é a morte por afogamento. Há outros, como ser arrastado por correntezas, ter fadiga física e ser necessário resgate. Mas a morte por afogamento é um risco real e grande.

Tive pelo menos duas situações em que achei que iria morrer. Ocorrem em condições grandes e de forte ressaca do mar, com ondas maiores de 2 metros, quando a maior da série quebra em cima do surfista. No primeiro momento, a forte energia da espuma arranca a prancha e o surfista passa a rodar na espuma e atingir maiores profundidades, pois a tendência da onda será joga-lo mais no fundo do mar.

Por instinto, tentamos resistir a força e energia da onda, para sair daquela situação o mais rápido possível, e ir à tona respirar. Esta situação nos produz um grande estresse. Estando nesta situação, podemos passar a engolir água, ter descompassos cardíacos… Enfim, produzir um total descontrole em si mesmo e levar ao afogamento. Estes momentos requerem muito equilíbrio emocional e preparo físico.

Caso não tenhamos acessórios de sobrevivência (como colete de flutuação), um dos recursos possíveis para sair desta situação será soltar o corpo para que flutue que volte à tona. As duas vezes em que estive nestas situações utilizei este recurso, observando-se, que mesmo na crítica situação que estava, procurei não perder o controle emocional e não entrar em pânico, mas sim, encontrar uma forma para sobreviver.

Zé Paioli ao lado dos amigos na década de 60 no litoral paulista.

Já socorreu alguém que estava prestes a se afogar?

Inúmeras vezes. Já retirei banhistas arrastados por correntezas e em situações de extremo risco de afogamento. A prancha é o que nos dá a segurança e recurso necessário para tirarmos as pessoas destas situações, com segurança, além da experiência que temos com o mar e o bom preparo físico para enfrentar e vencer estas situações.

Você consegue lembrar quais eram seus “problemas” relacionados ao surfe quando você tinha 15, 20, 30 anos e depois dos 40?

Até os 30 anos nunca tive uma lesão maior ou mais consistente. A partir dos 30 anos passei a ter algumas lesões leves nos tornozelos e nas costas, neste caso, musculares e não de coluna – continuei desta forma até os 50 anos.

A partir desta idade, passei a ter alguns incômodos nos joelhos, principalmente o direito e, a partir dos 60 anos, incômodos na coluna. Estes incômodos estão diretamente relacionados com o surfe e administrei por bons períodos com a prática da natação.

Fisioterapias, exercícios localizados, pretendo fazer a partir deste ano, assistido por um fisioterapeuta profissional, pois na minha condição e idade, será necessário para me manter surfando. Pretendo iniciar este ciclo físico, após o período de pandemia.

Como você cuida da saúde para se manter surfando?

Bem, como ainda trabalho, continuo surfando nos feriados e finais de semana, de tal forma que ainda não disponho de tempo total para exercer a atividade. Para manter condições mínimas da prática do surfe, residindo em São Paulo, realizo, pelo menos duas vezes por semana, sessões de “bike”, por duas horas e após esta sessão, exercícios localizados. Havendo possibilidades e tempo, em minha rotina semanal, realizo sessão de pelo menos uma hora de natação e média de 2 km percorridos na piscina.

No total, durante a semana, procuro pelo menos quatro vezes / quatro dias, realizar atividades físicas para conseguir me manter no esporte. Fora isto, realizo uma alimentação saudável, rica em frutas, legumes, carboidratos (arroz integral), carnes brancas, tais como peixe, frango e proteína/carne bovina e dormir no mínimo seis horas por dia.

Não utilizo suplementos vitamínicos, mas pretendo, são importantes em nossas atividades físicas. Estou me programando para realizá-los, com acompanhamento por profissionais da área.

Qual foi a idade que mais sentiu o peso da idade no surfe?

A partir dos 40 anos comecei a sentir diferenças, principalmente na remada, passei usar pranchas maiores. De 6’1” passei a surfar com 6’3” a 6’5”, para compensar esta diferença. Conseguia uma certa desenvoltura, entretanto, com menos flexibilidade. Portanto, o meu surfe com pranchinha começava a deixar minha plasticidade característica e as manobras já não eram tão impactantes.

A partir desta faixa de idade, com a volta do longboard e sendo convidado a participar de competições, iniciei um período de transição. No início surfava nas duas modalidades, mas com o tempo fui tendo maiores dificuldades na transição, principalmente do longboard para a pranchinha.

A partir 50 anos decidi parar definitivamente com a pranchinha e permanecer no longboard. Nesta categoria fui muito bem até os 60 anos. Bem, agora superando os 70, procuro fluir mais na onda, com boas linhas, algumas manobras de cutback e batidas, mas temos, realmente, mais dificuldades físicas. O corpo deixa de corresponder a movimentos mais elásticos, ficamos mais lentos e com cada vez mais perdemos flexibilidade, nosso aproveitamento nas ondas deixa de ser mais agressivo e passa a ser com mais limitações nos movimentos.

Os joelhos e nossa coluna já não mais correspondem ao que queremos exigir e limitam os movimentos em manobras mais radicais. Passamos por um processo de adaptação as estas novas/atuais condições físicas. Exigem um mínimo de preparo, exercícios físicos e condicionamentos fora da água, para nos mantermos no surfe.

Zé Paioli e Dr. Guilherme Vieira Lima trocam ideias sobre saúde também no outside.

O que o surfe trouxe de bom para a sua saúde?

O surfe só traz coisas boas para a saúde. Ele nos ajuda muito no equilíbrio e saúde mental, nos tira o estresse da semana. Relaxamos no mar, em contato e harmonia com a natureza. Fisicamente é extremamente saudável na combinação de preparo e familiaridade com a natação e, também, com exercícios físicos que nos proporcionem um mínimo de mobilidade e flexibilidade, nos movimentos para continuar a praticá-lo.

Hoje, com 72 anos de idade, manter um mínimo de atividades físicas fora d’água é fundamental e necessário para nos mantermos no esporte. Continuar na prática do surfe atualmente – e por todos estes anos de vida – é a maior contribuição de saúde que o esporte me proporciona. Não temos limites de idade na prática desse esporte, desde que nos cuidemos e estejamos preparados.

Já pensou em parar de surfar por algum problema de saúde?

Nunca. Tive graves acidentes, pelo menos três vezes bati a cabeça no fundo, além de uma hérnia de disco, torção forte de joelho, corte de quilha no tornozelo com mais de 30 pontos, etc, mas nada que me fizesse pensar em parar. Creio que, mesmo diante de uma situação mais grave de saúde, iria fazer de tudo para continuar surfando.

O surfe é mais que um esporte, vai muito além da prática, nos proporciona um prazer único, uma sensação incrível de deslizar sobre a onda, sem nada que o impulsione, a não ser por você próprio. Além disto, sempre é um grande desafio, uma busca incessante que vai nos proporcionar um prazer e alegria imensuráveis.

Esse bate-papo com o Zé foi o exemplo perfeito de como a saúde e o surfe estão relacionados. O que ele relatou é exatamente o que os estudos científicos em Medicina do Surfe mostram, sendo os pontos chaves: a evolução das pranchas trazendo novos tipos de lesões; o trauma contra a própria prancha sendo um dos principais mecanismos traumáticos relacionados ao esporte; o ferimento corto-contuso, bem como traumatismo crânio encefálico, sendo modalidades importantes dos eventos agudos e que merecem atenção; lesões torcionais de joelho, tendinopatias do ombro e dores lombares como as principais queixas ortopédicas; o afogamento como um agente causador de estresse e de morte.

Porém, o mais relevante desta entrevista foi perceber o quanto o surfe mantém o Zé (e muitos outros “Zés”) feliz, disposto e alegre. Preparar o corpo para suportar a carga física exigida por este esporte é o grande segredo desta fonte da juventude.

Nota: Nos dias 20, 21 e 22 de maio, acontece o VI Simpósio Brasileiro de Saúde e Medicina do Surfe, evento que reúne as maiores referências do assunto em debate sobre diversos temas que envolvem a saúde e o surfe. 
Vale a pena conferir!