Solitário Surfista

Laboratório mágico da vida

Gabriel o Pensador narra os primeiros passos no surfe do filho Davi, de 15 anos.

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Davi ao lado do professor Robledo Oliveira: “sede de aprender maior que o mar.”

Meu filho de 15 anos resolveu aprender a surfar e as primeiras tentativas são difíceis e cansativas, mesmo para quem já é bom em outros esportes. Davi anda bem de skate e aprendeu uns mortais no parkour, mas o maior benefício obtido nestas atividades para o surfe não é o equilíbrio nem a agilidade, e sim a determinação.

Quantos tombos e pancadas no tornozelo um skatista leva até conseguir completar o seu primeiro flip? É a mesma persistência que leva o surfista a conseguir suas primeiras manobras. O problema é que um jovem de 15 anos que já domina o skate pode ficar frustrado ao descobrir que no mar tudo é diferente e exige muito mais paciência.

Só para aprender a passar a arrebentação, sentar na prancha, olhar para o horizonte e identificar uma onda boa antes dela quebrar, encontrar o ponto certo e o ritmo das braçadas para entrar nela sozinho e ainda ficar em pé na prancha quando o chão vira parede, o iniciante vai precisar de vários dias de treino. Muito antes de sonhar em fazer qualquer outra manobra, vai levar caldos e ficar assustado, vai perder o fôlego, sentir medo de morrer, vai sentir frio e dores musculares que não conhecia e tem boas chances de ganhar uns hematomas ou até algum corte provocado pela própria prancha.

É normal, e até divertido, mas muitos desistem antes de saber que a relação custo-benefício desse aprendizado compensa tudo isso e mais um pouco. Enxerguei no meu filho uma calma e uma perseverança animadoras e recompensei-o com uma sessão de tow-in em ondas pequenas (mas nem tanto). O mar estava forte para um iniciante tentar entrar na remada e meu amigo Victor Gioranelli, que tinha acabado de dar uma aula para um surfista mais experiente, puxou o Davi com a corda presa ao jet ski para rebocá-lo pra dentro das ondas já em pé na prancha, fazendo o chamado tow-in pela primeira vez.

Gabriel, Davi e a raça reunida em São Conrado.

A “manha” do skate ajudou e ele pôde sentir a emoção da prancha em alta velocidade na parede de uma onda maiorzinha, do tipo que ainda não seria capaz de pegar sozinho e fazer o drop e o corte. Também tomou uns caldos mais fortes e uma pranchada na cabeça, mas estava de capacete, aprendendo na prática a importância do equipamento de segurança em situações mais desafiadoras.

Falando em equipamento, o piloto também tinha uma câmera GoPro, mas quando Davi soltava a corda e começava a surfar por conta própria, o jet-ski seguia em direção paralela por trás da onda, esperando o momento da queda para o resgate. Victor sabe pilotar com uma mão e filmar com a outra, mas dessa forma quase não dava pra ver o Davi. Existe uma outra maneira de entrar na onda que dificulta o aproveitamento do surfista mas favorece o ângulo do piloto para a filmagem. É com o jet-ski vindo reto e passando (quase surfando) a onda em direção à praia, mas assim o surfista não sabe muito bem o ponto e o momento certos de soltar a corda, e a sessão rende mais erros do que acertos.

Victor tentou esse método e mesmo notando que era mais complicado, Davi preferiu abrir mão de algumas ondas boas que poderia ter pego para tentar conseguir um videozinho bem feito de pelo menos uma. Não valeu muito a pena focar na filmagem, isso ficou nítido pra mim, pois a dupla estava indo bem melhor antes da mudar a estratégia.

No fim da sessão eu também peguei a GoPro e fiquei lutando contra a correnteza tentando capturar algum momento da dupla. Na verdade, olhando depois para tudo isso, percebemos que a melhor onda de todas foi a primeira, que nem foi registrada mas ainda lembro-me muito bem dela e talvez o Davi lembre pra sempre. Teremos ainda muitas chances de produzir imagens boas nesse esporte que é tão propício para fotos e vídeos, mas a primeira onda de tow-in vai estar sempre em destaque na lembrança.

Comecei a surfar aos 12 (ou 11, se considerarmos o primeiro ano no bodyboard) e minha mãe me deu um presente raríssimo na época, uma câmera à prova d’água! Era uma Minolta amarela. Não existia foto digital, tínhamos que lavar com água doce, secar e limpar a areia antes de abri-la para colocar o rolo de filme fotográfico e depois repetir a operação para retirar o filme e levá-lo para revelar em um laboratório. Não sabíamos se as fotos estavam boas ou tremidas até o dia da revelação. E também era preciso escolher bem os melhores momentos na hora de fazer os cliques, pois só tínhamos 24 ou 36 poses no máximo em cada filme.

O filme de 36 fotos era mais caro, e não gastávamos todas as fotos em um único dia. Ou seja, era um presente usado apenas em ocasiões especiais, alguns encontros de amigos ou passeios para praias diferentes. No dia a dia mesmo, a gente queria surfar, errar, acertar, dar risada e evoluir, até sentir aquele cansaço de tanto levar ondas na cabeça, sentar na areia, recuperar as energias, um contando pro outro como foi aquela ondinha boa que ninguém viu… pra depois entrar na água e começar tudo de novo.

Não tinha rede social. Não existia isso. Nenhuma rede social virtual. Nem celular. E a gente tinha tempo. Liberdade e tempo. Tempo pra sentir a natureza, o vento, o calor, os sons. Não tinha nada pra nos distrair do real. Nenhuma mensagem de texto, nem links, nem emojis, e a gente falava mais. E ouvia! As nossas conversas, as conversas ao redor. A gente ouvia até o silêncio. E assim, sentindo, rindo, falando e ouvindo, fazíamos amizades de carne e osso com naturalidade, sem saber através de um mural virtual se o novo amigo tinha casa de praia, roupas caras, carro, cachorro, gato, cavalo ou papagaio.

Era bem diferente, mas hoje ainda é possível fazer amizades assim, sentir a natureza e o tempo dessa forma, conhecer a liberdade e libertar-se da escravidão das imagens. O surfe é um bom caminho para isso, por mais que eu também goste, como todo surfista, de postar uma bela foto de uma onda boa que eu peguei, e ver os amigos comentando e dando likes.

Pai e filho agradecem a Netuno por mais uma sessão.

Mas quando eu estiver naquele mar perfeito e sem ninguém, solitário surfista em sintonia com a natureza e com a minha própria essência, exercitando minha paciência, perseverança e resiliência, não vou lamentar a falta de um fotógrafo, mesmo que eu pegue o melhor tubo da minha vida. Vou pensar na época em que eu tinha a idade do Davi e surfava com os amigos em São Conrado e me lembrar daqueles dias bons, quando o mar estava clássico e descíamos a pedra correndo extasiados, só com a prancha embaixo do braço e as espumas das ondas já brilhando e explodindo nas pupilas.

Nem lembrávamos da máquina Minolta amarela à prova d’água que era o máximo e estava disponível lá no armário do meu quarto. A gente estava feliz demais pra se preocupar com ela, vivíamos o momento presente de forma tão intensa que não importava se amanhã teríamos foto pra ver ou mostrar. A gente estava solto demais pra se prender a isso. A câmera ficava guardada. E as imagens também, mas só na nossa memória.

O sangue corre feito as ondas, sem parar, e assim é o tempo. O coração pulsa e registra em vários cliques por minuto. A nossa sede de aprender sempre vai ser maior que o mar. A nossa alma na verdade sabe tudo.

Mas nossas mentes continuam revelando a melhor parte, pouco a pouco, no laboratório mágico da vida.