Paulo Miorim

O começo da Glaspac

Pioneiro do surfe paulista, Paulo Miorim relembra a trajetória da primeira grande fábrica de pranchas do estado.

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Campeonato de surfe na praia das Pitangueiras, Guarujá, em 1967.Arquivo / Revista Trip
Campeonato de surfe na praia das Pitangueiras, Guarujá, em 1967.

No início da década de 1960, Paulo Miorim conheceu o surfe ao lado de um grupo de amigos durante uma viagem ao Rio de Janeiro. Na volta a Santos, decidiu encomendar uma prancha e tentar ficar em pé nas ondas. Nascia assim a história da Glaspac, a primeira grande fábrica do estado de São Paulo. Confira abaixo o relato de Miorim sobre o episódio que ficou marcado na história do surfe brasileiro. 

“Meu pai tinha uma Vemaguet 1962 (perua da DKW) e a emprestava para irmos surfar. Naquela época não havia rack. O jeito era forrar o teto do carro com cobertores velhos e amarrar passando as cordas pela janelas, rezando para a prancha não soltar com o vento.

No dia em que iríamos entregar a prancha Tiki para a Glaspac, que serviria de modelo para as pranchas fabricadas em série, foi na Vemaguet do meu pai que levamos. Porém, meu pai não poderia nem desconfiar que eu iria a São Paulo com o carro dele. Saímos na surdina após o almoço. Comigo estavam Sérgio Heleno e Antonio Di Renzo. Pegamos a prancha no Japuí, próximo à Ponte Pênsil, a amarramos no teto do carro e subimos a via Anchieta (a Rodovia dos Imigrantes seria construída uns dez anos depois).

A Glaspac ficava na avenida Santo Amaro, já perto da São Gabriel. Era uma empresa pequena, um dos donos era pernambucano criado numa colônia inglesa e tinha um sotaque de um inglês nato. Entregamos a prancha e exigimos que a mesma fosse devolvida dois dias depois, prazo suficiente para fazer um molde da prancha Tiki. Era uma segunda-feira e marcamos de buscar o modelo na quinta-feira.

Começamos a viagem de volta pela avenida Santo Amaro, fomos parar na avenida Jabaquara para pegar a rua Vergueiro e sair na Anchieta. Mas, como em tudo que se faz escondido, as coisas não saíram conforme o planejado.

Da esquerda para a direita: Antonio Di Renzo, Gregório Stipanich, Paulo Miorim, Lúcia Helena, Márcia Algodoal e Márcia Magra.

Não havia semáforo na Praça da Árvore e um carro atravessou bem na minha frente. Não pude evitar a colisão. Descemos do carro para ver as avarias: para-choque amassado, vidro do farol direito quebrado, para-lama direito amassado. Foi terrível. Imediatamente formou-se um tumulto em volta dos carros. O outro carro era dirigido por uma senhora, que trazia os filhos da escola. Ela me acusou de estar errado, eu, que vinha numa preferencial, tinha a certeza de estar certo.

Mas, imagine a cena: uma senhora com dois filhos no carro e o outro com três caras queimados de sol, muito fortes, discutindo com ela. A galera voltou-se contra nós e a senhora disse que ia embora. Sentamos no chão, na frente do carro da mulher, quando apareceu um cara grandão muito justo: “Eles são moços, podem ser playboys, mas estão certos. A senhora desculpe, mas está errada.”. Em momento nenhum faltamos com o respeito com a senhora, mas éramos superduros e não poderíamos nem pensar em pagar o conserto do carro. A multidão parou de nos acusar.

Liguei para o marido dela, que veio ao local e se prontificou a pagar o conserto do carro. Após acertarmos os detalhes, seguimos viagem. Foi difícil encarar meu pai e mentir que a batida havia sido em Santos. Dias depois, eu e meu irmão fomos a São Paulo e recebemos o valor do conserto. As primeiras pranchas entregues a nós eram ocas, somente com uma madeira longitudinal como estrutura (longarina), e não foram aprovadas.

Nova negociação e a Glaspac fabricou a prancha que se tornaria campeã de vendas na época: com poliuretano e manta de fibra de vidro, que hoje encontramos em vários museus de surfe no Brasil. Acredito ter sido um marco para desenvolvimento do esporte no estado de São Paulo.

Antonia Di Renzo (de costas) e Gregório Stipanich com uma Glaspac.

Cronologia do início do surfe em São Paulo:

1964 Eu, Sérgio Heleno, Dagoberto Batocchio e o Antenor, filho da dona de uma escola chamada Anwer (ficava perto da Faculdade de Letras, quase em frente à igreja da Pompéia, em Santos), íamos quase todos os finais de semana para o Rio. O Di Renzo apareceu com uma revista Manchete, que trazia uma reportagem sobre um novo esporte da moçada do Rio: chamava-se surfe.

Gregório Stipanich fabricava barcos, nós vimos diversos caras no Rio pegando ondas com pranchas de fibra. Daí até fabricar uma prancha oca de madeira com 2,40 metros, em agosto de 1964 (mais ou menos) foi um pulo. Em seguida o Gregório fabricou outra prancha listrada de vermelho e branco com 2,80 metros. Não havia cordinha, as pranchas enchiam de água. Muitas vezes, essa água ia para a parte da frente da prancha, ela mergulhava e o empuxo fazia com saltasse violentamente para trás… Era um perigo.

Na época, já havia umas pranchas de Madeirite roubada das obras e a molecada tentava pegar onda, alguns com pés de pato. Raramente alguém permanecia mais do que uns instantes de pé. A estreia da prancha foi em grande estilo na Praia de Pernambuco, no Guarujá, com uns quinze nadadores, em três carros, numa tarde fria e nublada, onde descobrimos que sem parafina ninguém ficava em pé.

1965 Em maio, eu e Sérgio Heleno demos baixa do Exército e pudemos nos 
dedicar a retomar a vida normal e surfar muito. Era um frisson, uma febre. Dia e noite falando de surfe, de Havaí, hang five, hang ten e o escambau. Surfe, surfe, surfe.

A foto está ruim, mas a lembrança permanece viva: Stipanich sentado entre as pranchas e as meninas.

Era uma batalha constante com os salva-vidas do Corpo de Bombeiros. Por diversas ocasiões fomos obrigados a sair da água porque o mar estava impróprio. Tínhamos que explicar que éramos nadadores, que quanto maior as ondas melhor para surfarmos. Nenhum dos salva-vidas tinha sequer ouvido falar nessa nova moda: o surfe. Di Renzo nadava no Corinthians e nos finais de semana chegava louco para surfar. Quando passou o filme Mar Raivoso então, ficamos alucinados. O Di Renzo assistiu 15 vezes, eu e o Sérgio Heleno umas 12. E o assunto era um só: surfe.

Começaram a aparecer vários adeptos do novo esporte: Fernandão, os gêmeos Dudu e Carlinhos (que fundariam a marca de surfwear Twin), os irmãos Fangiano, Fernando Quizumba, Sandoval, Miro, Italiano (vendia amendoim e depois virou um bom surfista), Sidnei Negão, Timó, Nelson Caríca, Eduardo Falcão (irmão de Charles Möeller, produtor e diretor de musicais), Nei, Detter, Barreto, Nelsinho Axel (que morreu atropelado quando ia surfar no Guarujá) e inúmeros outros.

A grande maioria morava nas imediações da Praia de Itararé, em São Vicente. O Emissário Submarino não existia, seria construído em 1975, mas em Santos começou a aparecer um pessoal. Eduardo Nogueira (Piolho),
 grande amigo nosso, que começou a surfar e destacou-se no cenário nacional, é dessa época.

1966 O Ilha Porchat Clube patrocinou o primeiro campeonato realizado no estado de São Paulo. Tirei terceiro lugar, mas no dia da premiação não compareci e não recebi a medalha. Trouxemos o Carlos Mudinho, campeão do Rio de Janeiro, e ficamos maravilhados com sua performance. Nessa época estudei com o Homero, que começava a surfar e fabricar pranchas.

1967 Com apoio da Prefeitura de Guarujá e do Jornal da Tarde (grupo de O Estado de São Paulo), realizamos de um campeonato no Guarujá, que realmente foi muito bem organizado e marcou para sempre como o início do surfe como esporte em São Paulo. Nós fomos juízes e participantes. Piolho foi campeão, Fernandão em segundo.

Daí pra frente todo mundo conhece a história…”