Leitura de Onda

Pílulas de sal da temporada

A poucos dias da estreia dos melhores do mundo em Pipeline, Tulio Brandão revela seus palpites para a temporada 2022 do circuito mundial.

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Kelly Slater e Italo Ferreira em direções opostas durante o Pipe Masters 2019.

A poucos dias da sirene que marcará o início da esperada temporada de 2022, em Pipeline, deixo para a crítica dos leitores algumas reflexões, opiniões e apostas.

– Começo pela infame decisão de repetir a final em Trestles. É uma daquelas escolhas que provocam oposição imediata, sem qualquer defesa, a não ser pela recorrente razão de mercado. A onda não oferece qualquer desafio técnico aos melhores do mundo, num ano que parece reunir todos os tops em forma plena.

– El Salvador, por outro lado, é uma novidade alvissareira. Dá complexidade cultural ao circuito mundial e joga no holofote em um país que tem se esforçado para construir a cultura de surfe em torno de suas boas ondas. Tomara que dê certo.

G-Land volta ao Tour depois de 25 anos.

– Tenho desde já uma etapa preferida na temporada: G-Land. A onda da Ilha de Java volta ao circuito depois de um quarto de século com a promessa de ser uma inesquecível guerra entre a ala goofy e os regulares, que são maioria no tour. Nas três etapas já realizadas, entre 1995 e 1997, os canecos ficaram com Kelly Slater, Shane Beschen e Luke Egan – vantagem, por enquanto, portanto, para os destros.

– O número de direitas afeitas a arcos na temporada me faz olhar com atenção para Jordy Smith. Ele parece estar em excelente forma, a julgar pelos últimos vídeos editados na rede, e, como uma legítima cria de Durban, é sempre um favorito em Trestles, mesmo em ondas pequenas. E, dentro de uma lógica de alternância de nações no poder, a WSL não acharia nada ruim dar um título a um sul-africano.

– Com a recente decisão da WSL sobre as finais em Trestles, Filipe Toledo viu a possibilidade de uma segunda chance de título cair em seu colo. Pelo talento, pela distância técnica para quase todos os demais, pela volta da etapa de Saquarema e por outros atributos eu apostaria, em condições ideais, em mais uma presença sem sustos do ubatubense no WSL Finals. Mas será preciso atenção, especialmente nesta temporada. Primeiro, Filipinho tem que atravessar sem danos a perna havaiana – se possível fazendo um bom resultado pelo menos em Sunset. Depois, acelerar forte, num ano sem espaço para apagões. Abaixo, explico a causa.

Jordy Smith sempre destruidor nas direitas afeitas aos arcos.

– A temporada de 2022 reúne uma espécie de tempestade perfeita, com quase todos os melhores surfistas do mundo livres de contusão e em grande forma, além de novos talentos em ascensão aguda, loucos por um posto no pelotão da frente, e uma entidade que, como dito, pode simplesmente estar cansada de repetir a bandeira no lugar mais alto do pódio. Portanto, não seria surpresa se, em Trestles, a partir do dia 8 de setembro, víssemos apenas dois brasileiros na disputa.

– Já que o assunto é julgamento, 2022 será um ano chave para a WSL. Há pelo menos três surfistas no pico da forma física e técnica: Gabriel Medina, John John Florence e Italo Ferreira. Pode ser uma temporada redentora para a entidade, mas para isso será preciso muita atenção do painel aos critérios técnicos, às diferenças sutis mas perceptíveis de surfe e, sobretudo, ao eventual preconceito de indivíduos de dentro da entidade contra determinados surfistas. Se o melhor do ano vencer, não importa a bandeira, será possivelmente a melhor disputa da história.

– Gabriel é um tricampeão no auge, depois de uma temporada avassaladora. Pelos vídeos recentes, segue em grande forma e pronto para defender o título e seguir rumo à provável condição de segundo maior surfista de todos os tempos, atrás apenas de Kelly Slater. Dito isso, o ano não será fácil: há muita gente fora de série no jogo, e muitos canecos acumulados na casa de Maresias.

Tricampeão no auge, Gabriel Medina é especialista em Pipeline.

– John John vem de duas apresentações magníficas no Havaí, onde consolidou a certeza de sua recuperação física pós-contusão. Está mesmo magnífico. Mas foram tantos os confetes que a própria WSL produziu um conteúdo demonstrando, através do vídeo de uma onda do havaiano, o que era preciso para uma nota 10. O havaiano sempre teve condições de vencer qualquer adversário, e torço desesperadamente para que a entidade deixe que ele lute por isso num jogo igual para todos.

– Italo é a fantasia, o inesperado. Embora seu surfe ainda tenha a necessidade de alguns ajustes finos, seu talento indomável e a capacidade de surfar de maneira explosiva fora dos limites convencionais o coloca na lista obrigatória de favoritos. A única dúvida, sincera, é o impacto que sua nova condição de celebridade pós-título olímpico terá em seu comportamento competitivo. Oxalá seja o mesmo surfista potiguar de sempre: simples, elétrico e arrebatador.

– Dois surfistas também se colocam como candidatos públicos à briga pelas vagas na final de Trestles, além dos favoritos Gabriel, JJ, Italo e Filipe. Jordy, como já dito, e o americano Griffin Colapinto, que em 2021 não chegou lá por um detalhe. Há, ainda, um surfista em fim de carreira, que pelas etapas anunciadas, em especial a última, no Taiti, pode surpreender os garotos: o medalhista olímpico Owen Wright. Para as direitas de manobra, ele tem o mais polido backside do mundo. Nos tubos, dá aula.

John John Florence vem de duas apresentações magníficas no Havaí.

– Kelly Slater, por fim. Não vou fugir do debate: o posicionamento do 11x campeão do mundo publicamente contrário à vacinação em plena pandemia, com posts polêmicos e apoio a políticos de perfil duvidoso, é triste e trágico. Ninguém, por certo, deve ser obrigado a injetar uma vacina em seu corpo, mas é importante assumir as limitações impostas por políticas públicas de Estado diante disso.

O ponto de partida para esse equívoco é a noção equivocada de que vacinação é um ato individual, e não coletivo, de impacto comunitário. A vacinação em massa não impede que cidadãos sejam contaminados pela variante ômicron, mas reduz o número de internações e mortes (num estudo recente, 0,5 por 100 mil em vacinados e 4 por 100 mil em não vacinados), reduz o risco de colapso em hospitais e, quando feita num grande percentual da população, dificulta o surgimento de novas variantes, ao enfraquecer o poder do vírus. Há dados sobre isso em diversos países.

No fim, como disse um amigo, não é possível ser 11x campeão mundial sem ter uma visão bastante individualista de mundo. No mais, torço que ele se vacine e dispute toda a temporada, sem interrupções. As ondas da temporada são especialmente afeitas ao melhor de todos os tempos. E, claro, por tudo o que fez para o nosso esporte e diante dos inacreditáveis 50 anos ainda de pé na elite, ele merecerá toda a reverência. Pelo menos, dentro d’água.

Além da final novamente em Trestles, a volta de Saquarema pode ser mais um ponto a favor de Filipe Toledo.