Leitura de Onda

O sertão virou mar

Tulio Brandão fala sobre o brilhante título de Italo Ferreira depois de final histórica com Gabriel Medina em Pipeline, Havaí.

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Italo Ferreira ganha o Pipe Masters com atuações de alto nível na reta final.

Italo Ferreira é a alegria que quase esquecemos existir no duro universo do surfe competitivo. A redenção do talento combinado com o sorriso, a vitória da simpatia. E, mais que tudo, a potência bruta capaz de romper o sertão, os obstáculos, as perdas.

A redenção vista em Pipeline, em final contra a máquina Gabriel Medina, é a do garoto filho de pescador da pequena Baía Formosa, pequeno município de oito mil habitantes no extremo leste do Rio Grande do Norte. Nunca foi tão importante marcar as origens de um vencedor da elite. Nunca.

Além de bravo, o nordestino é feliz, talentoso e, agora, pode bater no peito e se declarar campeão mundial de surfe. Italo subverteu o sertão simbólico do Norte.

Italo é, ainda, um raro exemplar de surfista da elite conectado com as questões ambientais que lhe dizem respeito. Foi o único brasileiro a ir a público, no palanque de Portugal, falar sobre a tragédia do vazamento de óleo na costa brasileira.

A história de 2019 começa antes do início da perna europeia, quando o potiguar estava praticamente fora da briga. Um inesperado décimo-sétimo em Teahupoo seguido de um nono no Rancho de Kelly o deixaram mais longe do debate do título. Falava-se em Gabriel, Filipe Toledo e Jordy Smith. Italo ainda estava perto, mas não parecia ter fôlego.

Pois, aos praticantes da fé, segue uma história curiosa, já contada em entrevistas: o cabra passou a acordar todo dia de madrugada para orar em silêncio e pedir forças pelo título. Quando o sol raiava, disse a namorada Mari, também num programa jornalístico, ele já estava na água, numa rotina de pelo menos quatro sessões de surfe por dia.

Uma rotina à altura das promessas oferecidas a Padre Cícero, a quem o povo do Norte recorria em tempos de seca. O pedido, a aquela altura, era quase uma causa impossível.

Potiguar de Baía Formosa sai da água emocionado.

Então, como um iluminado, Italo saiu da França com um vice-campeonato e, de Portugal, com o título. Noves fora os maus resultados dos adversários, ele assumia, ali, a lycra amarela de líder do CT 2019. Milagre? Trabalho duro com muita confiança?

Para a decisão de Pipeline, seguiu seu trabalho de retaguarda da fé: colou em locais como Shane Dorian e Johnny Boy Gomes, que lhe ensinaram o caminho do pico, e gastou muitas horas em todas as condições de surfe possíveis.

Italo, é preciso dizer, tem natureza semelhante à de seu rival Gabriel: adapta-se rapidamente a todo o tipo de onda. Vale a lembrança de The Box, na etapa do Oeste da Austrália deste ano. Era a primeira vez dele no “slab” mais difícil do circuito mundial, especialmente para surfistas de base goofy. Na primeira onda, fez um tubo impossível que lhe valeu a nota 8,17 com mais pinta de 10 da história do esporte.

Da mesma forma, Pipe também foi domada. No dia decisivo, impôs-se como o melhor em campo, num mar instável e com momentos difíceis. Barrou Peterson Crisanto nas oitavas, Yago Dora nas quartas e, na semi, encerrou o sonho olímpico de Kelly Slater.

Gabriel Medina perde em final histórica e termina o ano como vice.

Medina x Ibelli

De outro lado, um rolo compressor vencia seus adversários na estratégia ou por pontos. Gabriel abriu o dia decisivo contra o velho rival Caio Ibelli e, para garantir a vitória, interferiu propositalmente na onda do adversário, barrando-lhe a chance da virada.

O inédito e controverso movimento dividiu a praia e o mundo. De um lado, nomes como Barton Lynch, Billy Kemper, Owen Wright e outros surfistas, que entenderam o movimento como uma ação brilhante, do jogo. Se está dentro da lei, disseram, vale tanto quanto barrar um surfista por estar com a prioridade. A essência, que é a de usar um dispositivo legal para barrar a ordem natural de um surfista na onda, seria a mesma.

De outro, Kelly Slater, outros surfistas e torcedores, que julgaram a atitude de Gabriel antiética. Alguns, como o próprio Slater, que curiosamente, para muitos, tem a mesma fúria competitiva que o brasileiro, lembraram de uma regra que suspende o surfista por ação antiesportiva, de caráter grave e intencional. A interpretação não foi adiante.

Minha posição: como a regra levantada pelos críticos, para a WSL, não se aplica ao caso, é estratégia inteligentíssima e absolutamente legítima.

Afinal, cansamos de admirar o jogo de Adriano no limite da regra, como um enxadrista maquiavélico, para vencer seus adversários. Vimos ainda o santo Kelly Slater, lá pelos idos de 1996, fazer um “snake” vergonhoso em Shane Beschen na final do US Open.

A regra deve mudar em 2020, para não tornar a ação de Gabriel uma prática. Não será novidade. A WSL já alterou suas regras ao perceber as lacunas ocupadas por surfistas mais estratégicos – as últimas duas, por causa de Adriano de Souza, na disputa de onda em baterias de três surfistas sem prioridade, e de Ezequiel Lau, devido à agressividade na disputa com o havaiano John John Florence. Nada de novo.

Ainda que eu tenha considerado a ação legítima e estratégica, ouço atentamente o ponto de vista de pessoas que respeito. Uma delas, Flavia, a minha namorada, impactada com a ação, deixou de torcer para Gabriel no instante seguinte à interferência.

Ao mesmo tempo, já entendi, por tudo o que vi, ouvi e vivi, que em 2020 Gabriel estará alinhado de novo, pronto para brigar pelo tricampeonato mundial. Como outros, o cara não está lá para fazer amigos, está para vencer. Seu treinador, Charles, não transigirá um milímetro em suas convicções, e assim eles brigarão por títulos. Gostem ou não.

Tanto que, na sequência do evento, o surfista de Maresias atropelou, sem qualquer traço de culpa pelo que tinha acontecido, John John Florence, dando a impressão de que estava a caminho de mais um título. Na semi, passou por um satisfeito Griffin Colapinto, e correu para descansar alguns minutos antes de encarar o potiguar.

Kelly Slater para um lado de Italo Ferreira para o outro: brasileiro desbanca 11 vezes campeão mundial na semi.

Italo avassalador

Mas, na final, que pela primeira vez desde meados da década passada valia também o título da temporada, ele deu de cara com alguém realmente disposto a vencê-lo.

Italo, que já tinha vantagem no confronto direto, surfou para confirmar a superioridade. Mediu forças com o rival e, no momento mais importante de sua vida, derrubou-o.

Na disputa pela primeira onda, achou uma onda perdida para Backdoor para abrir vantagem e, na sequência, outras para Pipeline, culminando por encontrar, debaixo da prioridade do adversário, a segunda nota, com direito ao melhor aéreo do evento na sequência de um tubo. Deixou o recado ao mundo que, a partir daquele momento, ele estava no jogo, daquela forma, como o mais novo campeão mundial de surfe.

Um campeão diferente do que nos acostumamos a ver, que tem como principal companhia a namorada, Mari, companheira e torcedora no sol ou na chuva, nas vitórias por combinação ou nas derrotas mais sofridas. A química parece ter dado certo.

No confronto direto com Gabriel, Italo virou definitivamente algoz, com inapeláveis 5 a 2 de vantagem. Na areia, a vantagem era secundária – o que ele queria mesmo era dedicar o título ao tio e a avó, dois parentes próximos, que ele perdeu durante a temporada.

Italo é o primeiro nordestino a erguer a taça de campeão mundial do Championship Tour.

Os tijolos nordestinos que pavimentaram o caminho

Era a hora do troféu.

Chorou, abraçou as pessoas que ama e levantou o troféu, que refletia, além de sua própria trajetória, uma longa história de suor, talento e lágrimas construída por surfistas nordestinos nas últimas décadas. Gente que não chegou lá, mas deixou tijolos fundamentais para que o potiguar conseguisse escalar ao topo do mundo.

Quando Gabriel foi campeão pela primeira vez, lembrei os caras que construíram a escada que possibilitou ao garoto de Maresias o título. Na ocasião, eram nomes majoritariamente do eixo Sul-Sudeste, de onde veio o bicampeão.

Agora é hora de olhar para cima, com a ajuda da lente sempre atenta do craque dos dados Chico Padilha, jornalista paraibano radicado em Natal desde 2008.

Vale uma reverência ao paraibano Fábio Gouveia, que filmou “Fábio Fabuloso” (2004) em Baía Formosa (BF), quando já era baía formosense por adoção.

Aos irmãos Chicó e João Maria Nascimento, este último o primeiro local de BF a participar de eventos de surfe no país.

A Alan Jones, sobrinho de João Maria, um dos orgulhos de BF, que chegou a ser vice-campeão brasileiro e hoje exerce mandato de vereador no município.

A Hemerson Marinho, com casa em BF, terceiro no Mundial Amador do Japão, em 1990, à frente de Slater, e primeiro natalense a disputar etapa do CT, vindo das triagens.

A Jadson André, primeiro potiguar a vencer na elite do surfe mundial, e que lá atrás dizia, a quem quisesse ouvir, que “ainda iríamos ouvir falar desse menino, o Italo.”

A Danilo Costa, o primeiro talento do Rio Grande do Norte a medir forças com o mundo em ondas tubulares, como na semifinal do Taiti, em 2003, contra Kelly Slater.

A Aldemir Calunga, eterna referência do surfe potiguar.

A Marcelo Nunes, ex-integrante do CT.

A José Júnior Chupeta, que apareceu como SNI em foto de página inteira na seção “Sem Limite”, da extinta e saudosa Fluir, surfando uma onda linda no Pontal da BF.

A Joca Júnior, ex-integrante da elite e multicampeão nacional, em todas as categorias.

A Sérgio Testinha, que fez final no profissional na mesma época.

A Felipe Dantas, precursor do surfe nordestino no eixo Sul-Sudeste, exemplo bem acabado de profissionalismo na primeira fase da Abrasp, ainda nos anos 80.

Ao cearense Messias Félix, bicampeão brasileiro de surfe profissional.

Ao paraibano Saulo Carvalho, por muitos anos o goofy com presença mais constante em BF, onde reside seu shaper, Eduardo Jorge, com quem Italo fez muitas pranchas.

Aos shapers que trabalharam na Rio Doce, como Felipe Souto e William Meira, e a Elias Lamas.

Ao cearense Odalto Castro, primeiro brasileiro na capa da Surfing, em onda em Pipe.

Ao cearense Fábio Silva, primeiro nordestino a impor, na elite, o surfe de orientação aerialista da região de água mais quente do país.

Vale menção especial a um cara, o Luiz “Pinga” Campos, manager de boa parte dos surfistas que despontaram no país desde os anos 90. Assim como o campeão de 2015, Adriano de Souza, o novo dono do caneco é cria dele. Entrou na equipe em 2007.

Vale, ainda, menção a empresas locais que construíram o surfe no Nordeste, como a Pena, a Maresia, a Smolder, a SeaWay, a Greenish, a Detonação (responsável pelo principal circuito amador do Rio Grande do Norte) e a Aquax.

A lista é interminável, caros leitores. Por isso procurei recortá-la na influência mais direta, e, ainda assim, claro, devo ter esquecido de uma pá de nomes. Peço, antecipadamente, desculpas por eventuais omissões. A quem lembrar de outros surfistas e empresas, sugiro comentar no rico fórum da coluna. Agradeço.

Campeão comemora a com a namorada, Mari Azevedo.

Dominância sem precedentes

O título mundial de Italo é a confirmação da longevidade da dominância brasileira na elite do surfe mundial. Desde 2014, apenas em dois anos o caneco não esteve em Pindorama. Nesta temporada, dos cinco primeiros do mundo, três eram brasileiros.

Não há qualquer razão para acreditar que, em 2020, será diferente.

Com o título mundial, Italo ganha musculatura e ainda mais confiança. Estou curioso para vê-lo surfar na Gold Coast, onda que ele domina e venceu este ano, como campeão. Não duvido que ele esteja, como os boleiros têm dito, em outro patamar. Ainda mais vivo.

Gabriel, bem, segue em busca do sonho do tricampeonato. Todos sabemos que, salvo se ocorrer imprevisto, ele estará, no terço final da temporada, no mínimo, na briga, como tem acontecido desde 2014.

Temos, ainda, na frente da fila para o título, Filipe Toledo. Não faz mais sentido dizer que ele tem lacunas. O fato é que ele pode vencer quando quiser, a hora que quiser. É um raro virtuoso deste esporte, e jamais pode se esquecer disso.

O título de Filipe está encomendado.

Adriano, o capitão do time, passou as últimas temporadas às voltas com contusões. Seu repertório de manobras aéreas, um pouco inferior ao dos três conterrâneos, pode ser um obstáculo à briga, mas a credencial do título de 2015 e, ainda, a forma dominante com a qual venceu este ano o campeão mundial, Italo, nos tubos potentes de Teahupoo, nos fazem deixar a porta sempre aberta para a surpresa. Ele já fez isso antes.

De minha perspectiva, passada a temporada de 2019, o único surfista capaz de tirar mais um título mundial de um brasileiro no ano que vem é John John, o cara que liderava com muita folga o circuito mundial quando se contundiu, na etapa brasileira. Enquanto ele (além de seu estado físico) quiser, será sempre um dos favoritos ao título.

O espetáculo recomeça no dia 26 de março, na Gold Coast, agora com o sertão em festa, inundado por um mar cheio de ondas boas.