Leitura de Onda

Como é bom ser John John

Tulio Brandão fala sobre as performances do campeão John John Florence e a polêmica bateria com Gabriel Medina em Bells Beach.

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John John Florence, um talento excepcional, sentiu-se especialmente acolhido pelo poder da natureza de Victoria.

O inesquecível Rip Curl Bells de 2019, um desses momentos para sempre, foi vencido pelo melhor surfista do evento, em dois dias de ondas históricas.

Aqui, penso pela primeira vez em como é bom ser John John.

O havaiano, um talento excepcional, sentiu-se especialmente acolhido pelo poder da natureza de Victoria. Manobrou como se estivesse em casa, no sofá da sala, digo, no nervoso mar de Oahu, onde, como dizem os gringos, há muita água em movimento.

É nítida a naturalidade com que ele surfou as ondas mais pesadas de Bells, onde, supreendentemente, a esmagadora maioria dos surfistas da elite não se achou.

Há uma beleza em ver o melhor dos dias finais vencer. Afinal, se há alguma razão para a existência de um complexo e mal acabado (como veremos adiante) livro de regras, é garantir que o melhor surfista dentro d’água seja o campeão.

Dito isso, é hora de se debruçar, primeiro, sobre a final antecipada do evento, entre os dois melhores entre os poucos bons surfistas nas condições oferecidas por Bells.

O novo chaveamento e o seed baixo de JJF, devido à contusão, anteciparam para as quartas um encontro que deveria, no mínimo, estar reservado à semifinal.

Para Tulio Brandão, Gabriel Medina foi melhor no duelo com John John.

John John e Gabriel Medina fizeram um confronto parelho, de erros e acertos quase equivalentes, e os juízes optaram por manter o havaiano na prova.

Preferiram os potentes arcos, executados por JJF em suas duas maiores notas, sem se preocupar com as falhas na finalização – uma incompleta e outra sem muita pressão – à explosão do brasileiro, que usou, para compor a sua soma, pancadas na junção, uma batida, além de um floater que fez Isaac Newton se remexer na cova.

São escolhas. Nos grupos de discussão de surfe, houve quem dissesse que as manobras de Gabriel estavam muito para frente, sem borda, ou que os arcos e laybacks de John John eram repetitivos ou estavam sobrevalorizados.

O fato é que nenhum dos dois, durante a bateria, surfou uma onda completa. JJ falhou nas finalizações e no início de uma onda; Gabriel não teve oportunidades no meio.

Alguém tem que ganhar. Revi as ondas. De meu ponto de vista, Gabriel venceu.

Surfou no limite, tanto no floater quanto nas duas finalizações pontuadas. JJF esteve brilhante, com arcos de borda enterrada, mas décimos abaixo na minha contagem.

No olhar do palanque e de vários amigos cuja opinião eu respeito, o havaiano venceu. Foi apertado mesmo. Segue o jogo.

Aqui, também penso, por outra razão, como deve ser bom ser John John.

Para além da discussão do vencedor da bateria, há uma questão crônica sobre o critério quando o havaiano está na água. Juízes, em meu olhar, têm sobrevalorizado algumas ondas dele. Isso faz com que a diferença entre sua média e a dos adversários seja ligeiramente maior do que, em minha perspectiva, poderia ser.

A onda que lhe valeu 8,87, por exemplo, teve dois erros. A WSL surpreende ao nos dizer que é possível alcançar uma nota excelente, próxima da escala máxima, com perda de linha na primeira manobra e um tombo na junção. Note bem: foram erros, e não uma impossibilidade gerada pela onda. Na comparação com a maior nota de Gabriel, sobretudo, o suposto equívoco é amplificado.

Em diversas baterias no ano, o talentoso havaiano, quase sempre surfando o fino, vem tendo facilidade excessiva para ter vantagem. Enquanto isso, especialmente contra ele, adversários, mesmo quando acertam, têm que fazer mágica para extrair notas.

Para Tulio, Filipe Toledo esteve uma escala abaixo dos dois melhores, mas fez um surfe consistente, com bons momentos.

Na Gold Coast, por exemplo, Conner Coffin acertou uma das melhores manobras do evento e, ainda assim, saiu sem a nota mediana que precisava para virar em cima do havaiano. Depois da fatídica bateria em Duranbah, o americano foi pessoalmente ao palanque conversar com os juízes.

Não sou capaz de avaliar as causas desse sutil empurrão nas notas do havaiano. Não acredito em teorias da conspiração, e sim no olhar de juízes que, sem má fé, reverenciam particularmente o surfe, a história e os valores defendidos por John John.

Reconheço que definir a estética do melhor surfe é um exercício infame. São várias camadas de informação, que somadas, nos fazem chegar a uma conclusão.

De todo modo, a suposta leve turbinada nas nota gera, sem querer, problemas em cadeia para o esporte.

John John, em sucessão de notas excelentes, entra numa perigosa zona de conforto, passando a repetir manobras que poderiam ser variadas. O layback, por exemplo, foi insistentemente usado por ele durante toda a competição. Se estava lhe gerando folga nas notas, não havia mesmo por que mudar a estratégia.

Pressioná-lo a encontrar novas soluções, a partir de notas levemente inferiores, certamente ampliaria a potência e a criatividade do fenômeno de Oahu.

O layback foi insistentemente usado por John John Florence durante toda a competição.

Do outro lado do ringue, as notas um pouco aumentadas do havaiano muitas vezes desestimulam adversários a tentar a reação. Em poucos casos, viram combustível.

O surfe fica amarrado, portanto, nas duas pontas.

O detalhe é que, mesmo sem o possível ágio nas notas, John John seria o mesmo fenômeno e, possivelmente, teria vencido o evento de Bells. Ali, ele foi o melhor, e, como já dito, é sempre bom ver o melhor surfista ser campeão da prova.

É o velho clichê, batido mas verdadeiro, do “ele não precisa dessa ajuda”.

Em algumas ocasiões, talvez JJF perca baterias que venceria com esse olhar mais generoso. Aí, se for competidor, tratará de buscar novos caminhos para vencer. E quem ganha, lá na ponta, somos nós, que admiramos a genialidade do havaiano.

Superada a discussão sobre a super bateria, vamos às outras estrelas deste Bells tão especial. Filipe Toledo, em chave mais tranquila, surfou de borda para ir avançando de modo consistente, ainda que sem o brilho habitual, até a final. Esteve uma escala abaixo dos dois melhores, mas fez um surfe consistente, com alguns momentos.

Numa das baterias, no maior dia do evento, Filipe usou três tamanhos diferentes – e a melhor delas, a menor, partiu ao meio com duas ou três ondas de uso.

Na final, Filipe teve a possibilidade de vencer o melhor surfista do evento na última onda, mas a direita correu demais e impediu manobras na primeira parte, inviabilizando a nota próxima a sete que ele precisava para a vitória.

Filipinho, aliás, foi uma das vítimas da busca pela prancha certa. Numa das baterias, no maior dia do evento, usou três tamanhos diferentes – e a melhor delas, a menor, partiu ao meio com duas ou três ondas de uso. Uma pena.

Outro que patinou na escolha da prancha, de minha perspectiva, foi Jordy Smith. O sul-africano, que fez a segunda semi seguida, surfou com uma dura 6’6 durante os dois dias mais intensos do evento.

Se não estivesse entre os melhores do mundo, seus 1,90 metro justificariam tranquilamente a escolha deste tamanho. Mas, num Bells enorme e manobrável, levou vantagem quem soube aproveitar o espaço da onda com pranchas menores.

Jordy não surfou mal, mas frustrou muito minhas expectativas. Mesmo com arcos bem desenhados, esteve mais lento que JJF e Gabriel. Demorou para entender a junção.

O lamento tem uma razão: o swell raro de Bells, com enormes paredes afeitas à surfistas bons de borda, era uma janela perfeita, em teoria, ao surfe de Jordy.

Ainda assim, com dois terceiros lugares, mesmo sem ter surfado o seu melhor nos dois eventos da temporada, ele começa vivo e forte na briga pelo título.

“O ataque desmedido de Italo Ferreira à junção, nas maiores do dia, era algo tão espantoso que os juízes relevaram seu surfe algumas vezes sem muito drive nas partes iniciais da onda.”

Na outra chave, também derrotado na semifinal, Ryan Callinan fez boa prova, salvando-se da massa que patinou no swell gigante, com ataques ao grosso lip de Bells, mas com erros de estratégia. No fim, mostrou que sua volta à elite não foi um acaso.

Italo Ferreira é outro quinto colocado a merecer menção. Seu ataque desmedido à junção, nas maiores do dia, era algo tão espantoso que os juízes relevaram seu surfe algumas vezes sem muito drive nas partes iniciais da onda. Fiquei sem saber se era uma questão de equipamento ou de ajuste do surfe a aquela onda.

Nas quartas, ele venceria Jordy – que até ali curiosamente fazia sua melhor bateria – não fosse uma interferência esdrúxula, aplicada porque a regra se tornou mais importante do que a razão de ela existir.

Italo não interferiu na onda do sul-africano, mas, como não há um dispositivo que indique claramente que a punição não deve ser aplicada quando um surfista não atrapalhar adversários, valeu a regra que impede que um atleta cruze a frente do outro. Ingenuidade do brasileiro, já que a regra é bem conhecida, e falta de bom senso da WSL, já que nitidamente não houve dano a Jordy.

A decisão é especialmente dura porque tirou a liderança da temporada de Italo. Se tivesse avançado, no mínimo, estaria empatado na liderança com JJF.

Agora é esperar por Keramas, onde, aliás, Italo foi fulminante ano passado. A ver.

PS: Chego, neste texto, à coluna número 300 no Waves. Quero agradecer especialmente a vocês, leitores. Construímos esta história juntos. Boas ondas.

Veja a bateria completa entre Medina e John John: