Leitura de Onda

Allez, Florès

Tulio Brandão fala sobre a brilhante vitória de Jeremy Flores na final contra Italo Ferreira em Hossegor, França.

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Jeremy Flores celebra a sua primeira vitória no quintal de casa.

Foi quase uma Tomada da Bastilha o que aconteceu dias atrás em Hossegor. Jérémy Florès, com todos os acentos de seu nome em francês, deixou o Rancho do tio Kelly praguejando contra a máquina de ondas aceleradas e previsíveis e, em casa, apresentou suas armas mais contundentes para derrubar a nova monarquia brasileira e tomar de assalto o alto do pódio na prova francesa.

O campeão de Hossegor não nasceu no Velho Continente, mas, em tempos de arranjos olímpicos de novas nacionalidades, o surfista nascido nas Ilhas Reunião é mais gaulês que o velho Asterix. Florès é mais um originário de territórios ou ex-colônias francesas a virar ídolo de um país acostumado ao multiculturalismo – no futebol, brilham ou já brilharam, por exemplo, os argelinos-franceses Zidane, Benzema e Nasri.

Não há nada de revolucionário no surfe de Florès – o que há, e este costuma ser o combustível das maiores conquistas (sejam as de um país, sejam as de um surfista) – é um espírito inquebrável e uma enorme vontade de conquista. O francês de Reunião não dispõe de todas as armas do surfe contemporâneo, mas não tem desperdiçado suas não tão frequentes chances de vencer eventos, degolando adversários teoricamente mais fortes, sem piedade, nas arenas em que também é dominante.

Assim, em 2010, ele conquistou seu primeiro Pipe Masters. Assim, desde 2015, ele vence uma prova na elite ano sim, ano não. Derrotou John John Florence em sua segunda conquista no Havaí; derrotou Gabriel Medina na casa preferida do brasileiro, o Taiti, e agora, derrotou, finalmente em casa, o elétrico Italo Ferreira.

Francês sai da água nos braços da galera.

Nas difíceis condições de Hossegor em 2019, Florès aproveitou a oportunidade de desdobrar sua técnica de tubos numa arena conhecida por premiar o surfe progressivo. A janela se abriu em casa, à frente de uma surpreendentemente abrasileirada torcida francesa, que ajudou a turbinar o surfe do campeão a ponto de torná-lo imbatível na prova.

Desde as oitavas, ele produziu uma sucessão de médias altas, com direito a um punhado de ondas excelentes, enquanto a maior parte de seus adversários patinava com somas abaixo dos dez pontos. Foi uma daquelas vitórias avassaladoras, à moda Filipinho, e se por acaso Italo lhe tirasse o gosto do champanhe, do verdadeiro espumante da região de Champanhe, em casa, não teria sido justo.

O vice, Italo, segue a rotina digna de um eletro, agora com o pulso elétrico de mais um excelente resultado, logo depois da uma derrota prematura no rancho de Kelly. Duas manobras de finalização – uma de costas e outra de frente para a onda – resumiram bem a performance do brasileiro, que volta à disputa do título com o resultado: potência, velocidade, um estúpido controle da prancha e força para aguentar o tranco de uma Hossegor desta vez pouco afeita a brincadeiras.

Se não fosse o brilho de Florès, poderia ter vencido. Foi um dos poucos surfistas a conseguir domar o humor feroz de Hossegor, com movimentos precisos e estratégicos.

Italo Ferreira brilha nas ondas francesas, mas não consegue parar Flores na decisão.

Os dois terceiros colocados, Jack Freestone e Leo Fioravanti, dizem muito sobre as ondas atípicas do evento. São dois bons surfistas, que no entanto não estão acostumados às cabeças – o australiano tinha apenas dois nonos lugares no ano e o italiano um, a despeito de uma contusão que lhe custou quatro etapas.

À exceção de Italo, a etapa foi especialmente trágica para os brasileiros. Gabriel Medina e Filipe Toledo, que brigam pelo título, perderam na hora errada e saíram, respectivamente, com os pontos insuficientes de um nono e de um décimo-sétimo lugares. Deram sorte de o sul-africano Jordy Smith não ter feito, mais uma vez na carreira, quando a janela de abriu, o dever de casa.

O dano se alastrou também a todos os surfistas brasileiros que estão ou estavam na lista de classificados do CT. Deivid Silva perdeu três posições, caindo para 18º lugar, com o trigésimo-terceiro na prova. Willian Cardoso desceu para o 20º posto na temporada, depois de um décimo-sétimo na etapa. Yago Dora conseguiu se manter na útlima vaga da linha de corte com o nono na etapa, mas Caio Ibelli despencou duas posições com o décimo-sétimo lugar na França, passando a ocupar o 23º posto no ano. Todos os outros, que estavam abaixo da linha de corte, também caíram na tabela.

Com os resultados de uma etapa atípica , a prova de Portugal, com período de espera por ondas aberto nesta quarta-feira, muda de perspectiva. Gabriel ainda pode ser campeão antecipadamente da temporada, se vencer ou for à final nas ondas lusas, e der a sorte de uma combinação de resultados de seus adversários.

A pressão pelo resultado está com o bicampeão, mas também está na obrigação de boa performance de seus adversários, que sabem que não terão vida fácil na etapa de encerramento da temporada, em Pipe, onde Gabriel é incontestavelmente dominante.