Leitura de Onda

A centésimos de um sonho

Tulio Brandão analisa etapa mexicana do Circuito Mundial e a apertada final entre os estreantes em decisões.

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Deivid Silva (à direita) é vice-campeão do Open Mexico 2021. Jack Robinson fica com o título da etapa.

Por três centésimos, Deivid Silva não realizou o maior sonho da vida.

Pouca gente levava fé no devaneio desse paulista simpático até esta semana, quando ele escalou uma chave repleta de favoritos, com seu eficiente ataque de backside, até parar na final da boa etapa mexicana de Barra de la Cruz. Por um fio de cabelo, numa disputa entre estreantes em decisões, Jack Robinson conseguiu recolocar a Austrália no topo do pódio (a última vez havia sido com Owen Wright, em Teahupoo / 2019).

Mas, veja a beleza da vida: realizar sonhos precocemente pode não ser bom negócio, sobretudo porque o sonhador corre o risco de perder o propósito, às vezes por impossibilidade de sonhar mais alto, às vezes pelo sentimento de missão cumprida.

A medida do alcance de cada um é, no fim das contas, individual. Sem querer fazer qualquer paralelo, Adriano de Souza, que correu sua última onda em uma cerimônia emocionante na arena do Open Mexico, tem muito a nos dizer sobre isso. O título mundial dele era um sonho privado, não compartilhado com o mundo, e chegou depois de um longo caminho de trabalho e dedicação.

(Adriano ganhará, em outro momento, um texto exclusivo sobre sua aposentadoria.)

Vale esquecer, portanto, os tais centésimos que faltaram. Eles não têm tanto valor. O melhor é sonhar com o caminho. E, nesta estrada, Deivid deu enfim seus primeiros passos: chegou à primeira final na 20ª etapa na elite, garantiu lugar em 2022, chamou a atenção do mundo com um ataque vertical de costas para a onda e, agora, terá tempo prorrogado para refinar o que ainda há para ser trabalhado em seu surfe.

Deivid encaixa ataques potentes e sucessivos de backside em Barra de La Cruz.

Uma final laranja x banana

A decisão foi disputada com armas distintas, o que dificultou bastante a avaliação dos juízes. De um lado, um gênio dos tubos (num mar em que tubos não eram protagonistas) e com um bom jogo aéreo, mas bastante lento nas demais manobras e transições. De outro, uma verdadeira máquina de pancadas, com backside encaixado em movimentos contínuos e precisos, mas demasiadamente repetitivos.

Nesta bateria tão apertada, eu daria a vitória para o Deivid, assim como fizeram dois dos cinco juízes, e explico a razão: a onda, como apresentada na final, era sobretudo de alta performance, ou seja, exigia do surfista velocidade, pressão e manobras rápidas. Neste sentido Deivid estava melhor nas condições de Barra de la Cruz. Seu adversário acabou vencendo com um surfe lento, mas bem mais diverso.

Deslegitimar a vitória de Robinson seria um excesso descabido. O resultado poderia, sim, ir para qualquer um dos dois lados. Os tubos repletos de técnica encontrados pelo australiano naquele point break têm, sim, algum valor. No fim das contas, a história contada pelo australiano em sua última onda foi suficiente para lhe dar a vitória. Ele soube entregar o que os juízes queriam.

Por três centésimos de diferença, Jack Robinson vence o brasileiro na final.

Herdy nos leva ao futuro

A etapa mexicana parecia mesmo à procura de novos surfistas para estrelar o evento. A primeira derrota incompreensível foi a de Filipe Toledo, surfista que naquelas condições estava dois degraus acima dos demais. Bastou um apagão e pronto, o surfista de Ubatuba foi eliminado no round 3 por Rio Waida, da Indonésia, que disse, em entrevista, que foi Deus quem o iluminou naquela bateria.

Um rápido parêntese: até hoje eu não sei para quem Deus torce, afinal. Desconfio que Ele não tem tempo para essas coisas. No máximo, manda umas ondas para todos.

Outra surpresa: Deivid derrubou, na melhor bateria da vida, Gabriel Medina. O bicampeão mundial, que terminou em quinto na etapa, não parece ter sentido a derrota, uma vez que a liderança isolada para o WSL Finals já estava assegurada.

Já Mateus Herdy, a mais alvissareira aparição da etapa mexicana, tratou de eliminar o campeão olímpico e atual campeão mundial Italo Ferreira. Assim, sem as presenças de Jordy Smith e John John Florence, contundidos, o Open Mexico abriu as portas para o brilho dos coadjuvantes.

Herdy aproveitou bem a janela, levando seu tradicional sobrenome de volta aos holofotes. Filho do bom surfista Alexandre e sobrinho de ex-top do CT Guilherme, o campeão mundial Júnior de 2018 explorou no limite seu excelente jogo aéreo, para derrubar favoritos pelo caminho e parar apenas na semifinal. Se acelerar mais um pouco em manobras secundárias e transições, chegará rapidamente ao topo.

(Perguntar não ofende. O que devem pensar australianos e americanos quando o wildcard a brilhar numa etapa com ondas de alto nível é, mais uma vez, brasileiro? Aliás, o que pensam quando veem Deivid sendo ajudado por um enorme grupo de compatriotas na final? O que pensam, ainda, quando percebem a reverência ao líder Adriano? Este parêntese serve apenas para lembrar de nosso valor como nação.)

Outra surpresa da semi, o italiano Leonardo Fioravanti enfileirou uma penca de australianos – Ryan Callinan, Connor O’Leary, Owen Wright, Morgan Cibilic – e um americano da mesma safra, Conner Coffin, antes de perder para Deivid. Leo faz uma linha correta e surfa com pressão de frente para a onda, mas a forma como sua prancha treme nos bottom turns e em algumas manobras mais lentas me aflige.

Com a temporada regular encerrada, o italiano assegura sua vaga para 2022 com um respeitável 13º posto na temporada e, de quebra (mas não apenas por isso), garante a permanência dos disputados espectadores europeus para a WSL.

Mateus Herdy fica com a terceira colocação.

Sai Taiti, entra Trestles

Robinson fez bonito no México, mas deve ter lamentado especialmente o cancelamento da etapa de Taiti no calendário de 2021. Fora de série em tubos, ele poderia vencer sem dificuldades em Teahupoo e partir para uma inacreditável conquista da vaga na final. Sem a Polinésia Francesa, acabam as surpresas: entram, além dos três melhores surfistas do mundo, Gabriel, Italo e Filipe, dois surfistas de menor expressão, que ganharão uma chance de título mundial sem que necessariamente mereçam tal oportunidade: Conner Coffin e Morgan Cibilic.

Gabriel, como imaginado, chega à decisão com quase 12 mil pontos de diferença para o vice-líder, ou seja, com mais de uma vitória de vantagem. Não fosse a criação deste formato equivocado e injusto, o caneco já estaria na estante da casa de Maresias.

Eu não gostaria, agora, de estar à frente da WSL. Vamos a Trestles.

Trestles sedia etapa decisiva da temporada.