DNA Salgado

Antes da tempestade

Coluna DNA Salgado exalta a geração que abriu as portas para os brasileiros no Circuito Mundial.

Fabio Gouveia foi um dos grandes responsáveis pelo atual nível do surfe brasileiro.Ricardo Borghi
Fabio Gouveia foi um dos grandes responsáveis pelo atual nível do surfe brasileiro.

Bustin’ Down the Door é uma expressão em inglês que significa “arrombar a porta”. Foi isso que um grupo de surfistas australianos e sul-africanos fez nas temporadas havaianas de 75 e 76. Esses homens que derrubaram a porta das competições e mudaram o surfe para sempre, são referência até hoje e com certeza influenciaram o surfe profissional brasileiro.

O surfe nacional é afortunado por ter a sua cultura própria e original. No final dos anos 60 e começo dos 70, o esporte por aqui era mais contemplativo, “freak”. Éramos pé na estrada, procurávamos novas descobertas, picos inóspitos e muita liberdade. Mas no começo dos anos 80 essa chavinha mudou, e logo despertou-se a vontade de se viver do surfe profissional.

A sempre muito respeitada “primeira geração” desafiou o World Tour com nomes como Paulo Tendas, Daniel Friedmann, Roberto Valério, Ricardo Bocão, Fred D’Orey, Pepê Lopes e muitos outros. Eles inspiraram e influenciaram as gerações seguintes. Mas, dentre elas, teve uma que realmente “arrombou a porta”, puxada pelo nosso Mr. Style Fabio “Fia” Gouveia, campeão mundial amador em 1988 em Porto Rico.

Tive o prazer de acompanhar esta geração de perto e afirmo, sem medo de errar: estes caras precisaram comer “o pão que o Tour amassou”. Nada ali era fácil, cada um que entrava na água enfrentava, além dos oponentes, um preconceito dos juízes contra os brazucas (podem acreditar, isso era fato). Antes mesmo de começarem as baterias já se percebia uma má vontade. Isso era latente!

Fabio Gouveia, Teco Padaratz e Piu Pereira no início dos anos 90 no Havaí.Arquivo Alberto Sodré
Fabio Gouveia, Teco Padaratz e Piu Pereira no início dos anos 90 no Havaí.

Para mim, essa geração é a mais importante de todas por ter derrubado a barreira brasileira na antiga ASP (hoje WSL) e trilhar o caminho para hoje sermos quase unânimes nas competições mundiais. Talvez tenha sido a última geração brasileira que dava valor para o surfe de alma, paralelamente às competições. Que realmente apreciava uma surf trip com os amigos e amava entender de pranchas. Não que seja errado ser diferente disto, mas para mim – e centenas de milhares de surfistas ao redor do mundo – o lema é “o melhor surfista é aquele que se diverte mais”.

Convivi e convivo há muitos anos com alguns destes magos do surfe. Tivemos momentos incríveis, conquistas diferenciadas para época. Vou falar um pouco de alguns destes caras, dos quais tenho mais proximidade: Piu Pereira, Fabinho Gouveia, Renan Rocha, Ricardo Tatuí, Vitinho Ribas, Tinguinha Lima e Guilherme Herdy.

Lógico que todos desta geração têm uma relevância gigantesca e eu jamais cometeria a injustiça de não mencionar os nomes de todos estes gigantes: Peterson Rosa, Teco Padaratz, Neco Padaratz, Armando Daltro, Jojó de Olivença, Cristiano Spirro, Renatinho Wanderley e Tadeu Pereira.

Inteligente e observador, Piu Pereira foi uma espécie de conselheiro dos brasileiros que viajavam o Tour.

Amaury “Piu” Pereira Jr.

De fala mansa, observador, inteligente e dono de um surfe mais do que polido, Piu fez parte da primeira leva de surfistas desta geração, começando em 1989 a “seguir o Tour”, expressão muito usada na época. Piu era daqueles caras que competiam com precisão, trabalhou duro durante alguns anos para alcançar o seu objetivo maior, que veio em 1995 com a entrada no WCT.

Foi uma espécie de conselheiro dos que viajavam o Tour na época. Sempre equilibrado em suas colocações, Piu ajudou muitos os companheiros de circuito. Como amador, fez parte da fortíssima equipe que disputou o Mundial em Porto Rico em 1988. No Brasil ganhou tudo.

Piu é um “CDF” do surfe”, sua experiência e técnica contribuem até os dias de hoje para as gerações que estão chegando. Pessoalmente, considero ele um dos melhores parceiros de viagem que convivi. Também é um dos melhores seres humanos que conheço!

Renan Rocha tem no currículo uma nota 10 no Pipe Masters.

Renan Tavares Rocha

Determinado! Essa é a melhor definição para este surfista absolutamente “tarado” por surfar em qualquer condição. Preciso nos seus planejamentos, aliado a um surfe power de verdade, Renan teve uma carreira bem longa no WCT, por mais de 12 anos!

Teve seu ponto alto com a nota 10 no Pipe Masters de 2000, feito completamente fora da curva para a época. Digo mais, em uma bateria anterior ele já teria tirado outro 10 senão fossem os juízes e as teorias conspiratórias contra os brazucas (risos).

Renan competia com precisão, muitas vezes sabia como atacar o ponto fraco de seus adversários e vencia baterias de forma arrasadora. Grande parceiro de viagem no último volume, com ele é risada garantida, rock’n roll e muito surfe!

Assim como o vinho, Fabio Gouveia parece ficar melhor a cada ano.© WSL / Cestari
Assim como o vinho, Fabio Gouveia parece ficar melhor a cada ano.

Fabinho “Fia” Gouveia

Fia, nosso “Mr. Smoth Style”, fez chover no surfe brasileiro e mundial! De incrível precisão em suas manobras, Fabinho foi sem dúvida o nosso ícone durante toda essa época. Para mim e muitos outros, ele sem dúvida é uma das maiores referências até hoje.

Fabinho é a perfeita combinação entre o soul surf e as competições. Ele faz uma surf trip com a mesma empolgação que vence uma etapa do CT. Por falar em etapas, ganhou várias delas. Em 1991, por exemplo, faturou um dos campeonatos mais cobiçados da época, a World Cup em Sunset.

Além disso, foi o primeiro brasileiro Top 16 após a criação do WCT em 1992 e já foi o quinto melhor do mundo! Ama a hidrodinâmica e a cada dia, assim como vinho, está ficando melhor, principalmente como shaper. Por experiência própria, afirmo que as suas pranchas são alucinantes.

Ricardo Tatuí foi campeão na França vencendo ninguém menos do que Kelly Slater, Damien Hardman e Barton Lynch.André Cyriaco
Ricardo Tatuí foi campeão na França vencendo ninguém menos do que Kelly Slater, Damien Hardman e Barton Lynch.

Ricardo Tatuí

Ricardo Tatuí, dono de um estilo lindo, além de determinado e focado. Ele possuía uma linha muito competitiva, era versátil, e não desistia jamais.

Conquistou resultados importantíssimos em todas as categorias que disputou, com destaque para final em Biarritz, na França, onde foi campeão vencendo nada menos nada mais do que três campeões mundiais (Kelly Slater, Damien Hardman e Barton Lynch), além de sair de uma combinação de notas contra o australiano Shane Powell.

Quando amador, venceu o campeonato com o maior número de inscritos da história do surfe (mais de 700), o Op Pro, na praia da Joaquina (SC), em 1986. Engraçado, gente boníssima, Tatuí é um daqueles amigos para a vida toda.

Victor Ribas conquistou a terceira colocação no ranking do CT em 1999, feito histórico.Gustavo Leite
Victor Ribas conquistou a terceira colocação no ranking do CT em 1999, feito histórico.

Victor Ribas

Uma máquina de surfar, Vitinho tinha um estilo fluido no último volume. Também competia muito, bem definido no que queria buscar como surfista profissional.

A cada ano notava-se a sua constante evolução, até chegar à terceira colocação no ranking mundial em 1999, posição inédita para um brasileiro na época. Para os brasileiros, o sonho de ser campeão mundial ainda era muito distante. Fato esse que só seria superado muitos anos depois, por Gabriel Medina em 2014.

Vitinho é uma pessoa com um coração enorme. Amigo, parceiro de viagem, ótima companhia, já demos muitas risadas. Na Austrália, em 1993, pegamos ótimas ondas, viagem que estará na minha memória para sempre.

Tinguinha Lima mandava manobras que ainda nem tinham nome.Arquivo pessoal Tinguinha
Tinguinha Lima mandava manobras que ainda nem tinham nome.

Carlos Gonçalves de Lima “Tinguinha”

Ah, Tinguinha! Surfista sempre muito acima da média de todas as gerações nas quais transitou. Dono de um surfe com estilo único, forte e inovador, ele já voava lá no começo dos anos 80 e ninguém sabia sequer como nomear as manobras (risos).

Tinga entrou no WCT em 1995, chamou muita a atenção de todos e, com certeza, é lembrado até os dias de hoje. No Brasil, devastou os campeonatos que participou. Viajamos juntos por muitos e muitos anos. Ligado no 440v (risos), Tinguinha era o primeiro a cair e o último a sair da água.

Uma coisa afirmo, sem medo de errar, ele é um dos ícones mais importantes do surfe nacional. Na minha opinião, Tinguinha era uma espécie de Buttons Kaluhiokalani brasileiro!

Guilherme Herdy ficou por dez anos na elite mundial e venceu diversas etapas do QS.Divulgação HB
Guilherme Herdy ficou por dez anos na elite mundial e venceu diversas etapas do QS.

Guilherme Herdy

Local de Niterói (RJ), Guilherme Herdy tem na veia uma habilidade natural para entubar como poucos! Acompanhei a sua entrada no WCT, me lembro de conversar com ele por algumas vezes sobre estratégia e foco. Falo sem medo de errar, ele era extremamente determinado, e conseguia imprimir um surfe de altíssimo nível!

Seu surfe em Pipeline era uma pintura com uma colocação perfeita! Ficou por dez anos na elite do surfe mundial. No QS, venceu vários campeonatos, cito aqui um dos mais emblemáticos, o Mark Richards City Pro, em Newcastle, Austrália.

Era uma máquina de competir e desde o Mundial Amador, em 1992, não parou mais de crescer no surfe. Nos encontrávamos nos campeonatos e aeroportos da vida, cara de astral altíssimo, engraçado e amigão.

Esta geração conquistou muito títulos expressivos, como o bicampeonato do QS por Teco Padaratz em 1992 e 1999, assim como seu irmão Neco Padaratz, que venceu dois seguidos em 2003 e 2004. Peterson Rosa também ganhou com muita maestria o Hang Loose Pro Contest no Guarujá, em 1995, e o CT na Barra da Tijuca (RJ) três anos depois. Além de muitas outras conquistas dos guerreiros desta importante geração!

Só temos a agradecer a estes surfistas incríveis que, antes de mais nada, têm a alma salgada! Derrubando todas as expectativas, trilharam o caminho do surfe brasileiro para o momento presente arrasador, que é a Brazilian Storm! Viva!

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