Palanque Móvel

Tempos de intolerância

Os três amigos esperando a hora certa para entrar no mar. Mar Báltico, Suécia.

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Será que hoje as redes sociais fomentam e espalham um discurso de raiva que está atingindo os line ups? Foto: Andre Cyriaco.

 

Desde que o surfe deixou de ser um privilégio dos reis polinésios e começou a se espalhar por diferentes culturas, mundo afora, sempre houve um espírito de camaradagem e companheirismo entre os praticantes. Aquela deferência, em comum, ao oceano. Aquela sensação de, mesmo estando do outro lado do mundo, identificar-se com uma pessoa que você nunca viu antes, porque ela está carregando uma prancha debaixo do braço. Como se fossem da mesma religião ou parte de um clube secreto, onde só quem conhece o segredo de como é deslizar nas ondas do oceano pode integrar.

 

Nos anos 70, tempos de desbravamento, essa camaradagem foi mais forte do que nunca. Jovens surfistas cruzaram continentes, em busca de ondas perfeitas, e do outro lado do planeta foram recebidos amistosamente por locais. Trocaram informações sobre diferentes picos e culturas, além, é claro, de pegarem altas ondas juntos. A partir de então, o surfista tornou-se um viajante, um cidadão sem fronteiras.

 

Na minha opinião, essa é a verdadeira essência do surfe. Dividir as ondas do oceano, com velhos e novos amigos, em verdadeiro estado de graça, vibrando com cada onda boa surfada – sua e dos outros. E justamente por poder compartilhar um momento de tamanha intensidade espiritual, as surftrips estreitam e nos trazem novas amizades, quando a fazemos de peito aberto. Quem viaja pra pegar onda, sabe disso.

 

Com o passar dos anos, entretanto, o número de praticantes do esporte cresceu muito e, com isso, principalmente nos destinos mais procurados e de condições perfeitas, a quantidade de surfistas ficou maior do que o oceano pode dar conta. Aí começou aquela história de nem todo mundo sair da água de cabeça feita e, naturalmente, os locais de cada pico foram se tornando mais protecionistas, em relação a suas praias e suas ondas.

 

Somado a isso, com o crescimento do surfe de competição, iniciaram-se as rixas entre países, normais em qualquer esporte, embora não tenha muito a ver com o surfe. Primeiramente, entre havaianos e australianos, que, à época, dominavam o Tour e, posteriormente – com o passar dos anos, depois de deixar muita pele nas bancadas de coral –, com os brasileiros, que finalmente chegaram junto e tornaram-se uma potência, no circuito. Com a glória, vieram alguns admiradores e muitos antagonistas.

 

Enfim, seja pelo crowd, seja pela competitividade entre países, hoje, o mundo do surfe encontra-se um pouco mais dividido. Os muros derrubados por surfistas nos anos 60 e 70, foram reerguidos, agora, nas redes sociais.

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Quem viaja de peito aberto e disposto a respeitar a cultura local, sempre voltará para casa com novas amizades e grandes recordações. Foto: Hakan Nyberg.

 

Recentemente, dois fatos me chamaram a atenção, no que tange à visão dos gringos, sobre o surfista brasileiro. Em um artigo publicado na revista Surfing, falando sobre um suposto esvaziamento da etapa do Rio e seus motivos; e as matérias estrangeiras sobre a rabeada do Medina no Jordy Smith, em Fiji. Matérias à parte, o que mais me chocou foram os comentários intolerantes dos leitores, nas redes sociais, em relação ao Brasil, e aos surfistas brasileiros. Muito racismo, regionalismo e intolerância, sobretudo, por parte de americanos e australianos. Aquele discurso “à lá Donald Trump”, – sempre generalizando muito e com doses cavalares de raiva.

 

Não venho aqui em defesa dos surfistas brasileiros, é claro que a fama ruim não se cria do nada, mas sou contra a generalização e, acima de tudo, sou contra esse clima de raiva e intolerância entre culturas, que infelizmente atingiu o mundo do surfe.

 

Nesse ponto, por incrível que pareça, as redes sociais, que foram criadas justamente com o objetivo de aproximar pessoas e diminuir as barreiras da distância, hoje, fomentam e espalham um discurso de raiva, que não combina com o surfe. Muitos gringos que expõem suas críticas online, nunca sequer conheceram um brasileiro pessoalmente. Outros têm seus motivos, mas de qualquer forma, não combina com o surfe.

 

Tive a felicidade de poder surfar em vários continentes – outros países ainda virão – e em cada um deles, fiz amigos e peguei altas ondas com surfistas locais e outros viajantes. Graças ao surfe, tenho camaradas e até onde me hospedar no Havaí, Peru, Nicarágua, San Diego, e por aí vai.

 

Quem viaja de peito aberto e disposto a respeitar a cultura local, sempre voltará para casa com novas amizades e grandes recordações. Alguns perrengues também – de vez em quando -, mas no geral, esse é o espírito do surfista viajante, independentemente de seu país de origem. Quem está acostumado a fazer surftrips, naturalmente, se torna um cidadão sem fronteiras, por conhecer de perto os outros povos.

 

E é justamente nesse contato pessoal que percebemos que a grande maioria das generalizações são, no mínimo, exageradas, e que o surfe, mesmo nos dias atuais, ainda agrega. Hoje tem muito mais babacas criticando outras culturas, recalcados, escondidos atrás de seus computadores/celulares, do que na maioria dos line ups que já tive a oportunidade de sentar mundo afora. As fronteiras nunca impedirão o surfista de enxergar novos horizontes e ondas.

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