Surf no Chile não é gelada

Ricardo Alves dentro do tubo gelado

Ricardo Alves dentro do tubo gelado. Foto: Arthur Yuzo.
Dessa vez nada poderia dar errado. A equipe Radiação Oceanofotos estava pronta e preparada para terminar no Chile o que havia começado ano passado.

 

Nosso principal fotógrafo, Arthur Yuzo, o “Japa”, não nos deixou na mão como da primeira vez (Yuzo sumiu e não conseguimos encontrá-lo a tempo de embarcar para a viagem) e ainda levou seu equipamento para dentro d’água.

 

Eu já estava pronto, em Santa Catarina, aguardando a chegada de Fabiano de Souza e de Yuzo, que vinham de Sampa.

 

Fabiano traria a última prancha que faltava em meu quiver e também a do Japa. A viagem começou no dia 27 de fevereiro passado.

 

As ondas chilenas costumam ser geladas e consistentes. Foto: Arthur Yuzo.
Apesar da intensa correria, conseguimos agilizar tudo a tempo e pudemos embarcar tranqüiilos – apesar das muitas latinhas que embriagavam nossas cabeças.

 

Começava ali uma longa viagem dentro do busão. Viajamos com mais de vinte missionárias. Aquelas meninas, que não se cansavam de cantar, olhavam para nós com um olhar de receio, como se fossemos todos loucos. De certa maneira era compreensível, pois elas nunca tinha visto um surfista antes.

 

O momento mais aguardado da viagem foi a passagem pela Cordilheira dos Andes,  um lugar místico e de extraordinária beleza. O visual é paradisíaco e a cada nova curva podíamos ver montanhas imensas repletas de neve no topo. Simplesmente inesquecível.

A “eterna” viagem chegou ao fim e finalmente chegamos a Santiago, nosso ponto de partida para as longas esquerdas de Punta Lobos, situada na cidade de Pichilemu.

Punta Lobos – Chile. Foto: Arthur Yuzo.

Um “tiozinho”, que tinha uma Topic, nos levaria às ondas por US$ 80 dólares. O percurso de Santiago até Pichilemu demorou cerca de quatro horas e chegamos em Punta Lobos por volta das quatro da manhã. Com isso, dormimos no carro até amanhecer.

Com o sol dando o ar de sua graça – raridade durantes todos os dias em ficamos por lá – montamos nossa barraca no camping de Jean Robert, que não estava no local no momento.

 

Esperamos Robert chegar e, para nossa surpresa, ele não permitiu que acampassemos ali, alegando que o camping fecharia em três ou quatro dias. Fomos obrigados a montar nossa barraca na praia, ao lado da casa de um pescador e junto de Marcelo, um grande amigo meu, que estava começando a construir sua humilde casa nas areias de Punta Lobos.

Agora sim. Com o acampamento montado podíamos ficar mais tranqüilos. As ondas estavam de gala e variavam entre 6 e 8 pés, com cerca de 600 metros de extensão. O swell era de sul com forte influência de oeste.  

 

Para Fabiano e Japa, aquele visual se misturava entre o delírio de ver ondas tão perfeitas e a apreensão da primeira queda. Para mim, também era igual, só que eu já havia passado por essa situação outras duas vezes.

 

Ricardo manda ver no drop. Foto: Arthur Yuzo.

Fabiano esqueceu as quilhas de sua prancha 6’1 e optou por cair com uma 6’6. O Japa escolheu sua 6’2 e eu minha 6’1. Fomos a caminho das ondas, que nos obrigava a subir um morro e depois descer pelas falésias. Lá em baixo, deveríamos nos jogar na água e escalar as Tetas (nome dado aos morros onde quebra a primeira sessão da onda).

 

Era impossivel não notar na cara da galera uma expressão de receio nesse momento. Entramos no pico e pudemos sentir o que realmente nos esperava. As ondas estavam lindas, paredes infinitas, vento terral e muito frio. Surfamos por horas e foi um excelente mar de adaptação. Eu já tinha até me esquecido daquele intenso frio que nos castigava diariamente dentro d’água.

 

Passada a ansiedade da primeira queda, o dia seguinte prometia ser ainda melhor. Era final de semana e a praia estava repleta de turistas. Por isso deveríamos manter nossa barraca desarmada durante o dia.

 

No dia seguinte, o mar deu uma leve  reagida e as séries de 8 pés ficaram ainda mais constantes. Fizemos um bom surf pela manhã com manobras bem mais fluídas.

 

Visual irado do pico. Foto: Arthur Yuzo.
Como era o último sábado da temporada, tinha muita gente na água. Era necessário ficar lá trás para pegar a verdadeira. Nesse dia, o sol estava radiante, fervendo a cabeça da galera. Vi o Fabiano pegar boas ondas e o Japa estava tão empolgado com o surf que ainda não tinha feito nenhuma foto.

 

Durante quatro ou cinco dias, o mar manteve-se entre 6 ea 8 pés. Depois do domingo, fim de temporada, tudo se acalmou, não havia mais crowd e pegamos altas no começo da semana.

 

No meio da semana, entrou o vento norte (maral) e as ondas, pela primeira vez, ficaram mexidas. Ficamos dois dias sem surfar.

 

Sem surf não havia nada para fazer e isso nos aproximou de Omar, o pescador que mora ao lado de onde acampamos. O cara sem sombra de dúvidas é o que mais conhece cada canto daquele pico e, junto de Marcelo, formamos uma pequena comunidade.

 

As ondas proporcionam diversas manobras. Foto: Arthur Yuzo.
Depois apareceu um outro brasileiro no nosso camping, o Luciano, que também era fotógrafo e começamos a fazer uns trabalhinhos juntos.

Sexta-feira, o vento norte ainda insistia em soprar, até que no fim de tarde finalmente virou para sul. As ondas tinham 1.5m e a sessão do Mirador, mais para o inside, estava incrível, rolando bons tubos. Na hora em que  o Luciano foi entrar na água encontrou bem na beirinha, uma lula gigante que tinha no mínimo 1.2m de comprimento e pesava uns 15 ou 20 kgs, o que nos proporcionou três dias de banquete, tirando as corvinas sacadas por Omar que nos alimentava diaramente.O surf, esse dia estava de gala, era como surfar meio ou um metro no Brasil, as manobras fluiam facilmente e era possível aplicar todo repertório de manobras. Saímos da água de noite, amarradões com aquela sessão e fomos logo cozinhar aquela lula que estava esperando para ser comida. Fomos dormir na esperança de o mar dar uma reagida já que a direção do swell (norte) era muita boa e o vento dificilmente viraria para norte novamente.

Altas esquerdas. Foto: Arthur Yuzo.

 

Acordamos bem cedo e imediatamente fomos conferir as ondas lá de cima do morro. Logo chegando lá no alto , vimos uma série insana quebrar, devia ter um pouco mais que oito pés. O mar estava liso e não havia nem sinal de vento. Ficamos olhando por mais uns 25 ou 30 minutos, esperando o dia esquentar um poquinho e pensando com qual prancha iríamos cair, não tinhamos visto mais nenhuma daquelas séries maiores.

 

O Japa trazia duas pranchas (6’2 e 6’6), o Fabiano quatro (5’10, 6’1, 6’6 e 7’1) e eu quatro (5’11, 6’1, 6’6 e 7’1). Achei que o mar estava trânquilo e erradamente optei por minha 6’1, Fabiano ainda mais errado escolheu sua 5’10 e o Japa foi de 6’6. Fomos para o pico e os dois pularam antes que eu que fiquei me alongando um pouco mais. Na hora em que fui me atirar dos Morros, passei um dos maiores sustos da minha vida. No exato momento em que estava na ponta da lage, pronto para saltar, veio uma onda que quebrou em cima de mim, tentei me jogar por cima dela, mas ela era muito mais forte do que eu,  e me arrastou para dentro d’água por cima das pedras.

 

Fiquei uma cara sem respirar e na hora que voltei á superfície já vinha uma série que devia ter unas 6 a 8 pés e tomei todas na cabeça. Quando finalmente quando consegui sair da zona de risco, conferi minha prancha para ver o que tinha acontecido, e o prejuízo

Ricardo Alves bate no lip. Foto: Arthur Yuzo.
teria sido grande, perdi duas quilhas e destrui o outro copinho. Estava na merda, o maior dia de surf e eu só com a quilha lateral. Ainda tentei pegar uma onda mas era impossível, fui obrigado a sair remando.

 

Nem vi o Japa no mar e o Fabiano teria sido arrastado até o inside por duas séries gigantes que pegou quase todo mundo desprevinido. Tava foda e até aquele momento ainda não tinhámos surfado. Saí e botei as quilhas na minha 6’6, não podia me entregar fácil, afinal aquele era o dia que tanto esperavámos. Comi uma banana com doce de leite, me concentrei por uns quinze minutos e fui á luta. Dessa vez não fui agôniado e consegui entrar na boa.

 

Logo que entrei vi o Japa e conversei um pouco com ele. Era sábado, e por isso havia um certo crownd, mas atrás dos morros que era de onde vinham as maiores não tinha ninguém.O swell era de norte e as ondas vinham jogando para cima das pedras. Resolvi explorar aquelas morras e agora com a prancha certa tudo ficaria mais fácil. Remei lá para trás e fiquei sozinho por um bom tempo, até que entrou Jean Robert do camping e passou a me fazer compania.

 

Visual da Cordilheira dos Andes. Foto: Arthur Yuzo.
O drop estava difícil, muito vertical e as ondas ali chegavam facilmente aos 3 metros. A primeira que desci foi insana dropei a ladeira 90º e consegui chegar na base com tranquilidade. Saia da onda rapidamente pois não queria ir muito longe, assim poderia aproveitar o que o swell oferecia de melhor. A minha segunda onda talez tenha sido a mais irada. Dropei no limite e quando cheguei no meio da descida tomei um jato muito forte na cara, do spray do tubo que comia atrás de mim, nem mesmo eu tinha acreditado que tinha conseguido completar aquele drop.

 

Surfei altas ondas, o surf estava realmente incrível, era como se tivesse cumprido a missão, realizado muito bem o meu papel. A menor onda que peguei esse dia devia ter uns 8 pés, e depois de ter corrido risco de vida da primeira vez que entrei, fiz o melhor surf de toda minha vida, estava amarradão. O Japa também pegou altas ondas um pouco mais para baixo e o Fabiano que estava de 5’10 foi obrigado a surfar um pouco mais para o inside. Mas o melhor ainda poderia estar por vir, pois a previsão dizia que o mar subiria ainda mais para o dia seguinte. Depois de comermos e ficarmos por horas lembrando daquela sessão fomos dormir cheios de esperança e ansiedade de que swell reagisse ainda mais.


Ricardo Alves olha o mundo de dentro do tubo. Foto: Arthur Yuzo.
O dia seguinte amanheceu mais rápido que todos os outros, pois mal tínhamos conseguidos dormir tamanha era a vontade de acordar. Fomos imediatamente ver o que estava acontecendo lá em cima do morro. As ondas infelizmente baixaram e para variar a internet estava errada. As ondas tinham em média 6 pés. Não desanimamos e fomos surfar e mais uma vez o surf estava irado.

 

Durante a semana toda seguinte o mar foi baixando gradativamente, até que “hueves” (quinta-feira) as ondas atingiram o menor tamanho que tinhámos visto até então, meio metrão. Não pensei duas vezes, peguei minha prancha menor e corri para o mar, o Japa me acompanhou e o Fabiano ficou borestando na areia. A merreca tava o bicho, e como um bom brasileiro, eu já estava sentindo falta de surfar umas valinhas.

 

Os dois dias seguintes o mar manteve-se com 4 a 5 pés, e no dia que estavámos programdos para ir embora começará uma nova reação, mas não podíamos fazer mais nada a  não ser surfar o dia todo, até que partíssemos. O surf desse dia foi um dos melhores, as ondas estavam extensas e emparedadas. Surfamos muito, queríamos aproveitar ao máximo nosso último dia no paraíso.

 

Fabiano de Souza mostra o quiver paras dropar as ondas das chilenas… Foto: Arthur Yuzo.
Foi muito triste ter que arrumar nossas coisas, nos despedir dos grandes amigos chilenos, Omar, Marcelo, Marcel, Felipe, Tonho, Jean, Diego e ter que partir sem prespectiva de volta. Pegamos uma carona até Santiago e fomos para a casa de Jonhy, onde passaríamos mais dois dias. Não havia mais passagens para o dia em que queríamos voltar, então aproveitamos para coenhecer um pouco de Santiago. Na noite que antecedia nossa volta fomos a uma festa que tinha como intuito de arrecadar verba para a equipe chilena de surf ir competir no Pan-americano do Equador.

 

Foi muito legal, tinha muitos amigos nossos e curtimos a noite toda. Nunca fiquei tão bêbado na minha vida como aquela noite. Na hora de ir embora para a casa, fomos andando pelas ruas vendo a lua brilhar,  a saudade de casa à essa altura já era muito grande. Acordamos, ainda sem termos dormido e disparamos para a rodoviária com o pai de  Jonhy. Entramos no busão toltamente zuretas da night, e os dois dias que seriam necessários para chegarmos em casa pareciam eternos, assim como os momentos registrados na cabeça de cada um de nossa equipe. De novo no Brasa, meio metrinho na frente da minha casa, o sonho teria acabado. Que saudades do Chile.
 

…e coloca as pranchas em ação dentro d’água. Foto: Arthur Yuzo.
Gostaria de agradecer aos meus patrocinadores, Radiação/Free Surfboards, Oceanofotos e Green Gold e algumas pessoas que me apoiaram para torna-se possível a rea lização desse projeto: Gilberto Miranda e Neco Carbone que me shapearam pranchas incriveis, Fábio de Souza que pinta minhas pranchas, Eduardo Amorim (presidente da ASBC), Dimas Campos (diretor de arte da Oceanofotos), Joca Kortenhaus da Free e Surfboards the Journal, aos meus pais, Fabiano, Japa e Lua Gabriela que faz minha vida cada dia melhor. Espero que tenham gostado. Obrigado e muito boas ondas. Paz no surf !!!!
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