Aos 74 anos

Ensinar a mãe a surfar

Gustavo Lermen relata o dia em que levou a mãe de 74 anos para surfar pela primeira vez.

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Sessão inusitada aconteceu na praia das Maçãs, em Sintra, Portugal.

Minha mãe sempre teve medo de água; foi criada às margens do rio Uruguai ouvindo histórias de afogamentos nos traiçoeiros redemoinhos do poderoso rio que divide os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, extremo sul do Brasil.

Talvez se crescesse lá atualmente não tivesse esse trauma, pois parte da cidade de Marcelino Ramos e seu magnífico cânion foram submersos por conta da construção de uma usina hidrelétrica e barragem. O cânion era chamado de Estreito Augusto César e a sua grandeza foi coberta pelo “progresso” no ano 2000; com isso, o rio é transformado em um grande lago, alterando completamente a paisagem.

O medo dela persiste até hoje e faz com que evite ao máximo mergulhar e colocar a cabeça debaixo d’água. Nunca pensou em surfar, fica em pânico só de ver alguém passando a arrebentação e costuma dizer: “Meu Deus, eles estão indo para o fundo!”

A positividade ajudou bastante a superar traumas e pegar algumas ondas.

Surpreendentemente ao ver um vídeo de duas senhoras de 80 e 78 anos surfando, achou engraçado uma delas declarando que quando ficava em pé na prancha sentia-se a “dona do mundo” e que não conseguia “explicar a alegria pela boca”, então ficou motivada a experimentar também. Quando fui questionado por ela acerca dessa possibilidade hesitei, afinal, apesar de estar muito bem para quem está prestes a completar 75 anos, há riscos envolvidos e se acontecesse algum acidente eu me sentiria o responsável.

No entanto, sendo instrutor de surfe, não poderia negar-lhe este pedido e comecei elaborar um plano juntamente com a equipe da escola da Surf At… Surf School. Ao analisarmos as previsões, constatamos que haveria uma janela de três dias de mar pequeno na Praia das Maçãs, Sintra, Portugal, e decidimos que seria uma boa oportunidade.

Junto com meu pai ela fica mais forte e ganhou coragem para enfrentar o desafio. O meu pai tem 77 anos e apesar de algumas limitações físicas, geralmente está pronto para tudo, seja viajar, sair à noite ou subir uma montanha. Casados há 51 anos, os dois tem muita energia e caminham em média 5 km por dia. Gostam de dizer que são como as andorinhas por migrarem para outro hemisfério em busca de temperaturas mais amenas e tem um espírito aventureiro que se desenvolve cada vez mais.

É admirável vê-los ativos e muito bom constatar que idade cronológica não tem nada a ver com idade biológica, que se refere à qualidade da saúde e determina a qualidade de vida.

O pai  aventureiro deu a maior força.

Estava tudo combinado para sua primeira aula de surfe. Recebo então uma mensagem dizendo: “Querido filho, gostaria muito de te dar essa alegria e ter-te como meu professor de surfe, mas refletindo melhor, devido as degenerações na coluna, acho mais sensato assistirmos juntos a galera surfando, como ontem, vendo o pôr do sol. Obrigada por querer me proporcionar essa experiência nova. Te amo, bjs ”

Foi uma mistura de sentimentos ler isso; por um lado senti um certo alívio e por outro uma desilusão. Resolvi não desistir, tentei convencê-la de suas capacidades e também que os riscos seriam minimizados ao máximo. O que primeiramente foi um desafio imposto a si próprio, talvez agora para ela fosse algo como mais uma ‘prova de amor’ ao filho. Além disso, ela queria muito entrar no meu mundo e satisfazer a sua curiosidade em entender o motivo da minha atração pelo mar desde pequeno.

Chegou o dia; estava aparentemente tranquila dizendo que não havia criado nenhuma expectativa e iria deixar as coisas acontecerem. Assim, saímos cedo rumo à Praia das Maçãs com uma chuva fraca e ela dizendo, “bom que não está frio e não há vento”. Quando pegou na minha mão para dar um passo rumo ao desconhecido, demonstrou total entrega e confiança.

Gustavo Lermen e a mãe.

Os nossos pais muitas vezes são os nossos super-heróis e apesar de perderem alguns superpoderes, incrivelmente ganham outros.

Conseguiu fazer o ‘take off’ em terra, mas dentro d’água tudo foi mais difícil e até posicionar-se deitada na prancha foi uma tarefa dura. A sua positividade ajudou bastante e pegamos duas ondas, ela sentiu a famosa sensação de deslizar impulsionada pela força do oceano e logo concluiu: “isto é fantástico”.

Os avanços da medicina não significam garantia de qualidade de vida. Saber envelhecer é aceitar esta fase e as suas limitações, é manter a curiosidade e o entusiasmo, é agregar conhecimento e sabedoria sem deixar de aprender constantemente, é, sobretudo, manter a mente ‘jovem’ mesmo com o passar dos anos.

Ela não entendeu bem porque todos os que estavam na praia abriam um grande sorriso ao vê-la com uma prancha debaixo do braço e vestida de surfista. Depois, ficou muito surpresa quando disse que iria contar a sua história: “ninguém vai querer saber disso, eu não fiz nada, nem consegui ficar em pé”.

Fez muito, minha querida, principalmente em uma época onde vemos a exclusão dos idosos da sociedade e cada vez mais nos esquecemos de viver novas experiências. Neste dia tive a oportunidade de ser o professor da minha mãe e uma vez mais, foi ela que me ensinou.