Palanque Móvel

A dinâmica do show

Flávio "Boca" Oliveira comenta os altos e baixos da etapa do Championship Tour no Surf Ranch.

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Para vencer no Surf Ranch, é necessário arriscar ao máximo nas manobras.

A fórmula vencedora está no completo aproveitamento das oportunidades oferecidas pelas pistas no Surf Ranch, a “Fantástica Fábrica de Expressos”. Manobras fortes e bem definidas, adaptação nas transições, variação, capacidade de assumir riscos e se sair bem compõem a fórmula mágica dos high scores.

Não existe meia batida, meia rasgada, não existe tubo meio deep, meio board slide, meio floater, meio tail slide, meio layback e principalmente meio aéreo. Ou você tem os fundamentos, as manobras bem definidas no seu repertório e aplica, ou o monstro do lago te engole e some com você.

Minha tese de que a competição nas ondas do laguinho do tio Kelly são o Gabarito do Surf Moderno, ao meu ver, se confirmou.

Ondas com pouco mais de 1,5 metro em alguns momentos, deliciosamente chatas, fortes e que não dão chances para pensar. A piscina comprovadamente proporciona pistas de até 12 manobras para a esquerda e no mínimo seis na direita. Fora as seções de tubos velozes, apertados e afunilados. Não dá pra disfarçar, tudo é revelado e amplificado naquela arena tecnológica. Foi o que a primeira batalha da elite mostrou.

O surfe competição sempre foi e será dramático. Essa relação de amor e ódio entre a performance e a avaliação. O conflito, o atrito que gera inúmeras faíscas, é o responsável pela combustão que eleva o nível e proporciona a excelência atual do nosso esporte. Finalmente os juízes estão com a melhor ferramenta para ensinar o público, para atualizar os atletas e a eles próprios de como firmar os critérios de avaliação de alta performance e minimizar as dúvidas nas variáveis que aparecem na subjetividade.

São os juízes que acabam definindo se as qualidades individuais dos atletas estão ajudando ou atrapalhando as suas performances. Eles também aprendem com os atletas. Por exemplo no caso “Medina Gate” contra Tanner Gudauskas em Trestles. Os juízes nem entenderam o grau de velocidade, agressividade, flow e drive do ataque do Gabriel naquelas ondas. Seu surfe foi veloz e poderoso em suas manobras no lip.

O Strider, que estava no canal, declarou ter visto o fundo e as quilhas passando por fora da onda em todas manobras de ataque do Gabriel. Ele relatou o feito entusiasmado, mas os juízes ainda não estavam entendendo o que agora ficou óbvio. O surfe moderno tem que ser julgado pela frente, pelo lado e por trás da onda. Adivinhem onde é que dá pra cobrir e avaliar esses três ângulos de visão? Na cruel máquina dos expressos doces, é lógico.

Vou ali dar um mergulho na piscina para tentar entender umas polêmicas e já volto…

Yago Dora teve uma apresentação impecável na sua terceira esquerda.

Yago Dora com sua esquerda 3 foi impecável, mostrou a adaptação de uma rotina em plena evolução combinada com a capacidade de assumir o risco e se sair bem em um momento de pressão extrema. Nota 9.00 muito bem calculada por esse mestre do flow e estilo.

Yago ficou na porta da esperança somando 6.07 em uma direita fraca surfada na sua primeira apresentação. Por que fraca? Infelizmente Yago não atacou com fúria as ondas que pediam batidas poderosas atualmente definidas nessa ordem. Sai o bico, passa o fundo, inverte a direção, vão se as quilhas pro ar, a borda de dentro mantém contato e o drive com a onda para a prancha não sair capotando pra trás ou desgarrando pro lado sem controle.

Não adianta estar no tempo certo, velocidade certa, no ponto certo e manobrar apenas com um terço da parte da frente da prancha acima do lip e recolher, tem que atacar com a prancha toda.

A esquerda 1 do Kolohe foi para o somatório, mas teve apenas uma manobra de risco, o seu quinto movimento base-lip. Uma batida de backside com tail slide invertendo tudo, o pé da frente escapou e teve que apoiar as mãos na prancha para não cair na base da onda.

Quem acompanha skate e snow sabe que se apoiar a mão na prancha ou na rampa no momento de aterrissagem de uma manobra que não tem grab, o juiz não vai gostar. Depois até deu duas na lata com as quilhas passando por fora, foi para o tubo sem ficar deep e mandou um reversor de desaceleração suave. Pontuou mais que o Kelly na esquerda, mas não surfou melhor que o careca nunca antes na história dessa piscina.

Na direita 2, Kolohe levou o 7.70 que entrou para o somatório. Abriu com duas rasgadas fracas e para frente na onda ainda merreca, depois duas aceleradas e um reverse pra frente sem voar acima da onda. Entrou para o tubo e não ficou deep. Com a parede linda e ele vai para uma batida e alivia, aplicando o fundo sem inverter a direção, depois rasga bonito no pocket, bate empurrando o pé de trás mas não inverte a direção. Entuba com a perna da frente inteira visível, manda um air reverse no buraco, baixo e sem full rotation. Levou 7.70, o que ao meu ver foi muito. Não tem o que reclamar, o cara ficou na porta dos tubos, não voou alto e não espancou nas batidas.

A direita 3 gerou sua dramática declaração. Abriu com uma batida fofa, três pumps, para aplicar o reverse air que até foi bem executado, mas não saiu voando por cima da onda, foi para frente como sempre faz e passou longe de um full rotation. Voou baixo e para frente, minimizando o fator de risco da manobra. Com espaço para mais um ataque antes de entrar no tubo, preferiu um semi layback e esperou o teto cobrir.

Ficou deep no máximo por 1 segundo e meio no primeiro tubo. Deu um carve limpo sem risco, emendando uma batida sem inverter a direção num momento que a onda pede espancamento, ameaçou um carve e aliviou gerando uma meia rasgada, alisou pra frente e fez um tubo final com a perna da frente aparecendo o tempo inteiro, caindo no air reverse grab de final. 7.60 e não trocou nota. Achei fraco o surfe do Kolohe na piscina, pode chorar, mas não dá pra culpar juiz. O espelho dele rachou quando foi ver os replays gerais do evento, certeza.

Jordy Smith passeia pelas paredes com fluidez.

A Sci-Fi do gigante Jordy passeou pelas paredes com fluidez, nos seus tail slides, floaters, snaps e aéreos. Acredito que foi no aproveitamento das inúmeras oportunidades oferecidas pelas pistas, o quesito que acabou segurando as notas e não colocou o sul-africano entre os oito finalistas. Ele somou 15.03 contra a nota de corte estabelecida pelo 15.50 de Sebastian Zietz.

Jordy Smith na sua esquerda 1: mandou uma bela patada tirando a prancha e dando aquele board slide rápido na onda com tamanho no outside, veio trabalhando o base-lip no flow, a onda corre ele passa a seção e manda uma batida reverse 360 mantendo a velocidade, ótimo flow na derrapada, mas precisou de ajuste depois para voltar a trabalhar tendo que dar duas passadas. Conseguiu atacar o lip.

No final, preferiu usar a rampa do tubo para um rodeo flip e conseguiu voltar em cima do teto do tubo com ajuda da espuma. Foi avaliado com 7.27 numa performance que teve no total cinco manobras de ataque incluindo o três meia e o rodeo flip final. Apesar do flow, velocidade, ele deixou de atacar a onda em várias oportunidades.

Na sua direita 1 Jordy Smith destruiu o outside. Rasgada forte invertendo a direção, um double pump na base para atacar um layback forte, double pump novamente mandando batida forçando o pé de trás, teve que aliviar o peso da frente pra não embicar e já entrou no pocket do tubo.

Aí é que está o drama, o cara é um gigante de 1,90m. Seu juiz, como você quer que ele fique deep naquele tubo pra surfista de 1,70m? O cara ia dar com a testa no lipe rodando se fosse pra dentro desse funil traiçoeiro. Os tubos da piscina precisam da adição de mais de 1 metro, são muito apertados. O Jordy visivelmente fez menos manobras, aproveitando menos as oportunidades oferecidas nas pistas em comparação aos oito finalistas.

O Rocker da prancha do Kelly, que foi desenhada especialmente para a curva da onda da piscina, fez toda a diferença no encaixe do mestre do surfe competitivo e maior fissurado da história. Na sua última direita deu um slash/layback depois do double barrel que foi uma das manobras mais poderosas realizadas na parede final da onda. Lembrando que ele surfou forte desde o início e entrou no tubo antes, por cima da curva da onda e começou a entubar descendo, uma abordagem de mestre naquele hot pocket apertado e traiçoeiro.

Na sua esquerda 3 ele fez 13 manobras fortes sem aliviar, nem travar, entubou deep e mandou mais uma rasgada no final. Kelly honrou seu lugar entre os oito finalistas, nas minhas contas, atrás do Miguel. Na final surfou com força e variação para os dois lados, e graças ao surfe sólido de sempre conseguiu os pontos que o deixaram na terceira colocação. Ataques sem aliviar são fundamentais, e isso ele aplicou com energia de um atleta de 20 e poucos anos.

Falando em Miguel, como foi bacana assistir o encaixe dele nas ondas e comparar com os atletas da elite. Ficou nítido que tem surfe pra CT, mas precisa ativar o chip gladiador se quiser voltar e permanecer.

Miguel Pupo foi a grata surpresa do evento em Lemoore.

Julian Wilson estava fora da zona de classificação e foi para o tudo ou nada na sua última volta. Espremeu sua última esquerda do início ao fim. Finalizou mandando um super reverse grab com o landing mais complexo que pode acontecer, acima do lip e com a prancha de lado para a base. Ele precisava de 7.85, fez 8.60 e garantiu a classificação para a final.

Na direita surfou com energia, relativa variação e com o ingrediente fundamental, risco. Sem peso, já classificado, mandou um front side slob air muito alto, rendeu um 8.67 colocando o australiano na segunda colocação do qualifying. Tenho uma definição que me parece fiel aos critérios do surf moderno: Julian Wilson é um burocrata que voa.

Depois de analisar 100% das ondas surfadas no Surf Ranch Pro, entendi o motivo de Filipe Toledo não levar um 10 unânime naquela direita que ele apavorou com os três aéreos. Ele não cumpriu um dos requisitos claros que devem compor as “apresentações”: tem que ficar deep no tubo se quiser o 10, independente do restante da onda.

Apesar de Filipe ter destruído a onda do início ao fim, mesmo tendo variado as manobras, atacado a onda com air reverse na parede rodando lá no outside, um alley oop na saída do primeiro tubo e outro na rampa do segundo tubo. Sim, ele explorou o máximo possível das rampas, porém ele não cumpriu um requisito obrigatório, ficar deep no tubo. Dá pra ver que o tapete turbulento de espuma não atinge o fundo da prancha nessa onda do 9.80, sintoma definitivo de profundidade e risco naquele tubo afunilado.

Bem-vindos à era surfe tecnológico meus camaradas. O Martin Potter e o Peter Mel até se estranharam na avaliação do assunto, mas eu entendi a mente dos juízes, e já tinha alertado no Gabarito do Surfe Moderno sobre a avaliação das performances na piscina.

Carissa Moore fez a segunda maior somatória do evento, 17.80, ficando atrás de Gabriel 17.86. Mas provou estar ao lado dele no quesito power attack. Ficou nítida a superioridade no ataque dessa incansável havaiana sobre as demais. A melhor combinação de estilo, repertório e power surf entre as meninas saiu vencedora. Elas mostraram nesse evento que evoluíram muito na arte de entubar, o próximo passo das meninas é aprimorar a arte de voar.

Gabriel Medina com sua poderosa e bem adaptada rotina na pista de surfe artificial, mais uma vez se firmou como o surfista mais forte do Tour. O Kerrupt sólido, os tubos segurando na turbulência lá dentro, o repertório poderoso em ambas as bases, mais uma vez os ataques do brasileiro não deixaram dúvidas.

Stephanie Gilmore, Carissa Moore, Filipe Toledo e Gabriel Medina, os quatro melhores no Surf Ranch.

Com sua simplicidade de sempre explicou a matriz do foco e da seriedade que o trouxeram para mais essa vitória: “O Charles me alertou que esta seria a etapa mais difícil do ano”. Gabriel escutou seu mestre e focou apenas na excelência para vencer mais uma vez na piscina. Esta é sua 11ª vitória na elite do surfe mundial.

Sim, as ondas do lago são dignas de um campeonato de surfe da elite, porém ainda não existe um formato de evento que possa integrar o circuito da WSL. Raridade um evento da elite ser unanimidade entre os atletas, organizadores, público, mídia e patrocinadores. Na piscina não seria diferente.

A grande lição é que dá pra fazer e evoluir. Principalmente tendo uma piscina extra para treinos. No skate ou snowboard, sai um da pista e o próximo já vai ser autorizado a entrar. Na piscina o tempo entre as ondas precisa ser menor para melhorar a dinâmica do show.

Qualidades positivas como call certeiro e chances iguais para todos minimizaram nitidamente o fator sorte. O tempo entre as ondas deixam o julgamento menos apressado, facilitando as comparações para os juízes, o que é bom. Foi o evento com menos erros de julgamento que eu acompanhei.

Insisto que para avaliação das ondas do Rancho, pode ser adotado um novo critério. Atualmente as notas partem do zero e vão em direção ao 10. No Surf Ranch a onda partiria de uma nota 10 e seria dividida em trechos, com valores máximos em cada trecho para serem avaliados. A combinação dos valores atingidos em cada trecho seria somado e essa combinação poderia gerar a nota máxima.

Assim os atletas, juízes e nós do público poderemos nos entender e aceitar melhor as sutilezas do motivo que uma performance é melhor avaliada do que outra. Minimizaria o choque da impressão de sub ou super avaliação das performances.

Romper com as barreiras sempre gera desconforto.

Se pelo menos aumentarem o tamanho dos tubos para o evento do ano que vem, a aceitação será maior, com certeza. Para isso será necessário o aumento do tamanho da onda. Logicamente o número de manobras cairá, pois os arcos ficarão mais alongados, as curvas cobrirão mais distância do percurso e logicamente ficarão muito mais bonitas.

Os tubos nem se fala, puro sonho. Veremos em breve o que a mente do maior fissurado da história do surfe conseguirá materializar.

Flávio Carvalho Oliveira, o Boca, é surfista, publicitário, radialista e comentarista.