Flats e tempestades

Dropando a crise

Edinho Leite resgata texto em homenagem aos guerreiros shapers do Brasil.

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Ondas vêm e vão, marcas também. Só os verdadeiros artistas sobrevivem a flats e tempestades.

O texto a seguir foi escrito por Cris Shine, há mais de uma década, mas ainda me parece bem atual.

Considerado um produto ainda caro para o padrão brasileiro e bastante acessível aos olhos do público estrangeiro, as pranchas nacionais evoluíram muito. Já exportamos nossos foguetes para vários países. Shapers brasileiros são sucesso no Havaí, na Califórnia, na Espanha e até mesmo no Japão.

O fato é que, caras ou baratas, boas ou nem tanto, não existe surfe sem elas. Sem as tablas não teríamos as grandes marcas de surfwear, nem os atletas, campeonatos, revistas especializadas, feiras, nada. O surfe sem elas não é nada.

Tudo começa com um processo químico. Uma porção mágica expande-se dentro de uma forma de concreto e de repente temos um bloco recém-nascido. Como todo bebê, lá vai ele pra estufa por algumas horas, até ficar no ponto de ser adotado por algum fabricante de pranchas. O bloco de poliuretano é o corpo da prancha. Até ele entrar na sala de shape, temos um corpo sem alma. É o shaper, com seu feeling, que vai acrescentar um sopro de vida a ele.

Nem sempre a sensibilidade pra sentir as bordas é igual àquela necessária para lidar com as agruras de uma economia caótica. Mas eles seguem, fabricando pranchas.

Quem nunca viajou na ideia de encomendar a prancha direto com o shaper? Passar horas discutindo a possibilidade dessa ou daquela rabeta ou curva. Concave ou não? E depois, ficar ligando pra fábrica todo dia até o veículo sair. Surfistas são iguais no mundo inteiro, só mudam de pico. Parecem crianças ao pegar um brinquedo novo. O ritual de colocar o deck, o leash, passar parafina. Aquela ansiedade pra testar o novo equipamento.

Quem já teve a chance de visitar uma fábrica de pranchas sabe o que se passa nos bastidores. Tudo tem cheiro forte, coça, queima, agride os olhos, pulmões, mãos. Não é fácil. Rola muito suor antes da sua prancha flutuar em águas salgadas.

Nos últimos dez anos, vários fabricantes de pranchas se organizaram e abandonaram o velho esquema do fundo de quintal. Surgiram no mercado grandes empresas de glass. Muitos shapers passaram a usar máquinas para facilitar o trabalho e aumentar a produção. As antigas fábricas se equiparam e hoje estão abertas ao público.

Atrás de suas máscaras e de sonhos. Deles e nossos.

Como todo mercado, o de pranchas não foge à regra, e encontramos muitos picaretas que acabam conturbando o meio de campo e depois saem de cena. São para-quedistas que por má fé ou ignorância acham que ainda podem enganar o consumidor. O fato é que por um tempo, esse tipo de profissional até consegue vender seu produto, porque coloca o preço lá em baixo, pois não paga nenhum tipo de encargo e usa matéria prima de péssima procedência. Um dia, a verdade aparece e o fabricante inescrupuloso é deletado pelo próprio mercado.

A má notícia é que tem aumentado o número de fábricas-piratas e esse tipo de concorrência desleal quebra aqueles que querem trabalhar como se deve: usando material de primeira, pagando profissionais especializados, mantendo um preço justo. Nossos surfistas estão cada vez mais exigentes e sabem como escolher um bom equipamento, mas a crise econômica pela qual passamos acaba incentivando a procura por pranchas mais baratas e de qualidade duvidosa.

É fato que nos últimos tempos, os fabricantes, mesmo os mais antigos e renomados, sentiram uma queda imensa na produção. Muitas fábricas diminuíram sensivelmente o número de funcionários. Alguns fabricantes optaram por terceirizar seus serviços na tentativa de cortar custos sem abrir mão da qualidade. Uns conseguiram, outros não. E infelizmente algumas portas fecharam.

“How many boards must a man…” Imagine o resto…

As lojas diminuíram os pedidos e adotaram o sistema de consignação. Clientes que antes viajavam duas vezes por ano e renovavam o quiver, agora surfam em seus picos de origem e ao invés de comprarem novas pranchas, aprenderam a conservar ao máximo seus equipamentos.

Mas, eis que se aproxima o verão. Época das vacas gordas. O cheiro forte da resina e das tintas e o barulho intermitente da plaina anunciam que é chegada a hora de ganhar dinheiro. Correr atrás do prejuízo.

Esse foi, sem dúvida, um ano pra lá de difícil. Foram muitas séries na cabeça, um swell gigante que por pouco não varreu a determinação de muita gente boa que está no mercado há anos. Aqueles que tiveram força pra varar a rebenta, terão agora a chance de surfar as melhores da série e continuarão criando esses mágicos brinquedos sem os quais não haveria o surfe.

Enquanto você estiver passando parafina em sua nova prancha, outros blocos estarão sendo expandidos e shapeados. Enquanto você lê essa matéria, em alguma sala de shape sua prancha pode estar sendo confeccionada. É o milagre da criação. Ou quase isso.