Jaime Viudes

Rivalidade histórica

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Picuruta Salazar é o maior campeão brasileiro de longboard. Foto: Sebastian Rojas.

Na cena internacional do longboard, um circuito mundial começava a ser esboçado em 1986, mesmo que de carona com os campeonatos de pranchinha. O ícone australiano Nat Young, campeão mundial de surfe ainda na era dos pranchões (1966), era um prato cheio para atrair atenção da mídia. Quando o Sundek Classic de Ubatuba (1988) aconteceu, Nat já era o maior nome da retomada do longboard no mundo.

O Sundek foi o marco da retomada no Brasil. A vinda dele ajudou no entendimento sobre os conceitos básicos. A proposta do Nat era da linha horizontal, baseada em explorar a extensão da prancha com o trabalho dos pés, abusando do knee turn e noseriding. Ele era imbatível dessa forma. Mas isso não durou muito tempo.

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Nat Young é o grande nome da retomada do longboard mundial. Foto: Reprodução.

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Stuart Entwistle, Nat Young e Otávio Pacheco na premiação do Sundek Classic em 1988. Foto: Sebastian Rojas.

A Shortboard Revolution ainda fervia no sangue de surfistas do mundo todo. Muita gente das pranchinhas começou a competir paralelamente nos pranchões. Mesmo assim, ou até por isso, Nat continuava absoluto, pelo menos até Picuruta Salazar abraçar de vez sua carreira de longboarder.

Em sua primeira aparição nos mundiais, o Gato deu um sutil recado para Nat no Alternativa (89), na Barra da Tijuca. Foi vice e o australiano venceu. Mesmo ainda focado nas pranchinhas, nascia ali o esboço de uma das maiores rivalidades dos pranchões, curiosamente entre representantes de escolas diferentes, a clássica e a progressiva. Para piorar, um episódio colocou pimenta na relação entre os dois.

Ambos disputavam a final de uma etapa do mundial na França, quando o brasileiro atingiu com a prancha a caixa estanque do fotógrafo Sylvain Cazenave enquanto surfava uma onda e teve sua quilha quebrada. Ao sair na praia para trocar de prancha, o carioca Rico de Souza entregou na mão do Picuruta a prancha reserva do próprio Nat Young, que pareceu não se importar com a situação.

Assim que entrou uma série, Picuruta achou prudente liberar a primeira onda para o australiano. O gringo remou e não conseguiu entrar. Quando quis ir na de trás, o Gato não deu mole e ambos remaram juntos, colidindo as pranchas.

Pior para Nat, que também teve sua quilha quebrada e quase chegou a agredir o Picuruta, tamanha indignação. Para piorar, eles estavam hospedados na mesma casa. Foi o primeiro campeonato de longboard do Picuruta na Europa, ficando em terceiro lugar. Nat venceu.

No auge dos anos 90, a progressividade era uma realidade em expansão, mas, enquanto Nat estava no tour, o julgamento ainda era conservador. Sua presença era muito forte e a modalidade dependia da sua presença para sobreviver dentro da ASP. Foi campeão mundial de longboard em 86 / 88 / 89 / 90, numa supremacia jamais repetida. Os anos passaram, Nat foi ficando velho e de saco cheio daquilo tudo. A ASP percebeu que o longboard poderia sobreviver sem ele.

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Picuruta Salazar, o rei da linha vertical. Foto: Lima Jr.

Já Picuruta, mesmo com a chegada de uma nova geração de competidores bem mais jovens, continuou se dando bem. A garotada vinha com muita energia e ele sabia que não precisava de tudo aquilo. Ele não sofria, naturalmente fazia o meio termo, por isso deu tão certo no circuito de longboard.

Vinha literalmente na manha do Gato, fazendo curvas suaves, umas beliscadas no bico e, de repente, mandava uma batida absurdamente vertical. Era tão impressionante, que acabou sobressaindo em cima dos outros fundamentos. Picuruta havia mudado as diretrizes do surfe de longboard.

É bem verdade que até antes dele teve o Stuart Entwistle, campeão mundial de 87, que já buscava uma linha mais arrojada, embora passasse longe da verticalidade. E no início dos anos 90 vieram Joey Hawkins e Jeff Kramer, que explodiam nas manobras aéreas. Mas a constância do Gato fez dele a maior referência.

Em mais de 30 anos de Longboard Tour, Picuruta teve tempo de sobra para fazer frente a Nat Young, ao seu filho Beau, que foi bicampeão mundial, até o mais novo, Bryce. Foi três vezes vice-campeão mundial, aterrorizando Joel Tudor, Bonga Perkins e seu maior carrasco, o havaiano Rusty Keaulana. Até hoje, pelo menos dois de seus vice-campeonatos são contestados. No Brasil, coleciona nada menos do que 10 títulos nacionais na categoria profissional.

Em 2008, no tradicional Oxbow de San Onofre, na Califórnia, fez uma incrível terceira colocação. Do alto do pódio, pedia desesperadamente para Eduardo Bagé subir para dar uma força com o idioma. Em vão. Nat Young, que era contratado da Oxbow para promover o evento, fez questão de subir para lhe entregar o troféu.

No microfone, citou Picuruta como a maior pedra no sapato da família Young, que se sentia feliz por tudo o que eles viveram no Longboard Tour e honrado pela oportunidade de compartilhar aquele momento. O Gato chorou de alegria.

Lembro do Bagé muito feliz por presenciar aquele momento, mas com uma ponta de arrependimento por não ter subido quando o Picuruta chamou.